
É
de supor que, como conseqüência direta de seu gênero de vida, devido ao qual as
mãos, ao trepar, tinham que desempenhar funções distintas das dos pés, esses
macacos foram-se acostumando a prescindir de suas mãos ao caminhar pelo chão e
começaram a adotar cada vez mais uma posição ereta. Foi o passo decisivo para a
transição do macaco ao homem.
Todos
os macacos antropomorfos que existem hoje podem permanecer em posição erecta e
caminhar apoiando-se unicamente sobre seus pés; mas o fazem só em casos de
extrema necessidade e, além disso, com enorme lentidão. Caminham habitualmente
em atitude semi-erecta, e sua marcha inclui o uso das mãos. A maioria desses
macacos apóiam no solo os dedos e, encolhendo as pernas, fazem avançar o corpo
por entre os seus largos braços, como um paralítico que caminha com muletas. Em
geral, podemos ainda hoje observar entre os macacos todas as formas de
transição entre a marcha a quatro patas e a marcha em posição erecta. Mas para
nenhum deles a posição erecta vai além de um recurso circunstancial.
E
posto que a posição erecta havia de ser para os nossos peludos antepassados
primeiro uma norma, e logo uma necessidade, dai se depreende que naquele
período as mãos tinham que executar funções cada vez mais variadas. Mesmo entre
os macacos existe já certa divisão de funções entre os pés e as mãos. Como
assinalamos acima, enquanto trepavam as mãos eram utilizadas de maneira diferente
que os pés. As mãos servem fundamentalmente para recolher e sustentar os
alimentos, como o fazem já alguns mamíferos inferiores com suas patas
dianteiras. Certos macacos recorrem às mãos para construir ninhos nas árvores;
e alguns, como o chimpanzé, chegam a construir telhados entre os ramos, para
defender-se das inclemências do tempo. A mão lhes serve para empunhar garrotes,
com os quais se defendem de seus inimigos, ou para os bombardear com frutos e
pedras. Quando se encontram prisioneiros realizam com as mãos várias operações
que copiam dos homens. Mas aqui precisamente é que se percebe quanto é grande a
distância que separa a mão primitiva dos macacos, inclusive os antropóides mais
superiores, da mão do homem, aperfeiçoada pelo trabalho durante centenas de
milhares de anos. O número e a disposição geral dos ossos e dos músculos são os
mesmos no macaco e no homem, mas a mão do selvagem mais primitivo é capaz de
executar centenas de operações que não podem ser realizadas pela mão de nenhum
macaco. Nenhuma mão simiesa construiu jamais um machado de pedra, por mais
tosco que fosse.
Por
isso, as funções, para as quais nossos antepassados foram adaptando pouco a
pouco suas mãos durante os muitos milhares de anos em que se prolongam o
período de transição do macaco ao homem, só puderam ser, a princípio, funções
sumamente simples. Os selvagens mais primitivos, inclusive aqueles nos quais se
pode presumir o retorno a um estado mais próximo da animalidade, com uma
degeneração física simultânea, são muito superiores àqueles seres do período de
transição. Antes de a primeira lasca de sílex ter sido transformada em machado
pela mão do homem, deve ter sido transcorrido um período de tempo tão largo
que, em comparação com ele, o período histórico por nós conhecido torna-se
insignificante. Mas já havia sido dado o passo decisivo: a mão era livre e
podia agora adquirir cada vez mais destreza e habilidade; e essa maior
flexibilidade adquirida transmitia-se por herança e aumentava de geração em
geração.
Vemos,
pois, que a mão não é apenas o órgão do trabalho; é também produto dele.
Unicamente pelo trabalho, pela adaptação a novas e novas funções, pela
transmissão hereditária do aperfeiçoamento especial assim adquirido pelos
músculos e ligamentos e, num período mais amplo, também pelos ossos; unicamente
pela aplicação sempre renovada dessas habilidades transmitidas a funções novas
e cada vez mais complexas foi que a mão do homem atingiu esse grau de perfeição
que pôde dar vida, como por artes de magia, aos quadros de Rafael, às estátuas
de Thorwaldsen e à música de Paganini.
Mas
a mão não era algo com existência própria e independente. Era unicamente um
membro de um organismo íntegro e sumamente complexo. E o que beneficiava à mão
beneficiava também a todo o corpo servido por ela; e o beneficiava em dois
aspectos.
Primeiramente,
em virtude da lei que Darwin chamou de correlação do crescimento. Segundo essa
lei, certas formas das diferentes partes dos seres orgânicos sempre estão
ligadas a determinadas formas de outras partes, que aparentemente não têm
nenhuma relação com as primeiras. Assim, todos os animais que possuem glóbulos
vermelhos sem núcleo e cujo occipital está articulado com a primeira vértebra
por meio de dois côndilos, possuem, sem exceção, glândulas mamárias para a
alimentação de suas crias. Assim também, a úngula fendida de alguns mamíferos
está ligada de modo geral à presença de um estômago multilocular adaptado à
ruminação. As modificações experimentadas por certas formas provocam mudanças
na forma de outras partes do organismo, sem que estejamos em condições de
explicar tal conexão. Os gatos totalmente brancos e de olhos azuis são sempre
ou quase sempre surdos. O aperfeiçoamento gradual da mão do homem e a adaptação
concomitante dos pés ao andar em posição erecta exerceram indubitavelmente, em
virtude da referida correlação, certa influência sobre outras partes do
organismo. Contudo, essa ação se acha ainda tão pouco estudada que aqui não
podemos senão assinalá-la em termos gerais.
Muito
mais importante é a ação direta — possível de ser demonstrada — exercida pelo
desenvolvimento da mão sobre o resto do organismo. Como já dissemos, nossos
antepassados simiescos eram animais que viviam em manadas; evidentemente, não é
possível buscar a origem do homem, o mais social dos animais, em antepassados
imediatos que não vivessem congregados. Em face de cada novo progresso, o
domínio sobre a natureza, que tivera início com o desenvolvimento da mão, com o
trabalho, ia ampliando os horizontes do homem, levando-o a descobrir
constantemente nos objetos novas propriedades até então desconhecidas. Por
outro lado, o desenvolvimento do trabalho, ao multiplicar os casos de ajuda
mútua e de atividade conjunta, e ao mostrar assim as vantagens dessa atividade
conjunta para cada indivíduo, tinha que contribuir forçosamente para agrupar
ainda mais os membros da sociedade. Em resumo, os homens em formação chegaram a
um ponto em que tiveram necessidade de dizer algo uns aos outros. A necessidade
criou o órgão: a laringe pouco desenvolvida do macaco foi-se transformando,
lenta mas firmemente, mediante modulações que produziam por sua vez modulações
mais perfeitas, enquanto os órgãos da boca aprendiam pouco a pouco a pronunciar
um som articulado após outro.
A
comparação com os animais mostra-nos que essa explicação da origem da linguagem
a partir do trabalho e pelo trabalho é a única acertada. O pouco que os
animais, inclusive os mais desenvolvidos, têm que comunicar uns aos outros pode
ser transmitido sem o concurso da palavra articulada. Nenhum animal em estado
selvagem sente-se prejudicado por sua incapacidade de falar ou de compreender a
linguagem humana. Mas a situação muda por completo quando o animal foi
domesticado pelo homem. O contato com o homem desenvolveu no cão e no cavalo um
ouvido tão sensível à linguagem articulada que esses animais podem, dentro dos
limites de suas representações, chegar a compreender qualquer idioma. Além
disso, podem chegar a adquirir sentimentos antes desconhecidos por eles, como o
apego ao homem, o sentimento de gratidão, etc. Quem conheça bem esses animais
dificilmente poderá escapar à convicção de que, em muitos casos, essa
incapacidade de falar é experimentada agora por eles como um defeito.
Desgraçadamente, esse defeito não tem remédio, pois os seus órgãos vocais se
acham demasiado especializados em determinada direção. Contudo, quando existe
um órgão apropriado, essa incapacidade pode ser superada dentro de certos
limites. Os órgãos vocais das aves distinguem-se em forma radical dos do homem
e, no entanto, as aves são os únicos animais que podem aprender a falar; e o
animal de voz mais repulsiva, o papagaio, é o que melhor fala. E não importa
que se nos objete dizendo-nos que o papagaio não sabe o que fala. Claro está
que por gosto apenas de falar e por sociabilidade o papagaio pode estar horas e
horas repetindo todo o seu vocabulário. Mas, dentro do marco de suas
representações, pode chegar também a compreender o que diz. Ensinai a um
papagaio dizer palavrões (uma das distrações favoritas dos marinheiros que
regressam das zonas quentes) e vereis logo que se o irritardes ele fará uso
desses palavrões com a mesma correção de qualquer verdureira de Berlim. E o
mesmo ocorre com o pedido de gulodices.
Primeiro
o trabalho, e depois dele e com ele a palavra articulada, foram os dois
estímulos principais sob cuja influência o cérebro do macaco foi-se
transformando gradualmente em cérebro humano — que, apesar de toda sua
semelhança, supera-o consideravelmente em tamanho e em perfeição. E à medida em
que se desenvolvia o cérebro, desenvolviam-se também seus instrumentos mais
imediatos: os órgãos dos sentidos. Da mesma maneira que o desenvolvimento
gradual da linguagem está necessariamente acompanhado do correspondente
aperfeiçoamento do órgão do ouvido, assim também o desenvolvimento geral do
cérebro está ligado ao aperfeiçoamento de todos os Órgãos dos sentidos. A vista
da águia tem um alcance muito maior que a do homem, mas o olho humano percebe
nas coisas muitos mais detalhes que o olho da águia. O cão tem um olfato muito
mais fino que o do homem, mas não pode captar nem a centésima parte dos odores
que servem ao homem como sinais para distinguir coisas diversas. E o sentido do
tato, que o macaco possui a duras penas na forma mais tosca e primitiva, foi-se
desenvolvendo unicamente com o desenvolvimento da própria mão do homem, através
do trabalho.
O
desenvolvimento do cérebro e dos sentidos a seu serviço, a crescente clareza de
consciência, a capacidade de abstração e de discernimento cada vez maiores, reagiram
por sua vez sobre o trabalho e a palavra, estimulando mais e mais o seu
desenvolvimento. Quando o homem se separa definitivamente do macaco esse
desenvolvimento não cessa de modo algum, mas continua, em grau diverso e em
diferentes sentidos entre os diferentes povos e as diferentes épocas,
interrompido mesmo às vezes por retrocessos de caráter local ou temporário, mas
avançando em seu conjunto a grandes passos, consideravelmente impulsionado e,
por sua vez, orientado em um determinado sentido por um novo elemento que surge
com o aparecimento do homem acabado: a sociedade.
Foi
necessário, seguramente, que transcorressem centenas de milhares de anos — que
na história da Terra têm uma importância menor que um segundo na vida de um
homem(1) — antes que a sociedade humana
surgisse daquelas manadas de macacos que trepavam pelas árvores. Mas, afinal,
surgiu. E que voltamos a encontrar como sinal distintivo entre a manada de
macacos e a sociedade humana? Outra vez, o trabalho. A manada de macacos
contentava-se em devorar os alimentos de uma área que as condições geográficas
ou a resistência das manadas vizinhas determinavam. Transportava-se de um lugar
para outro e travava lutas com outras manadas para conquistar novas zonas de
alimentação; mas era incapaz de extrair dessas zonas mais do que aquilo que a
natureza generosamente lhe oferecia, se excetuarmos a ação inconsciente da
manada ao adubar o solo com seus excrementos. Quando foram ocupadas todas as
zonas capazes de proporcionar alimento, o crescimento da população simiesca
tornou-se já impossível; no melhor dos casos o número de seus animais
mantinha-se no mesmo nível Mas todos os animais são uns grandes dissipadores de
alimentos; além disso, com freqüência, destroem em germe a nova geração de
reservas alimentícias. Diferentemente do caçador, o lobo não respeita a cabra
montês que lhe proporcionaria cabritos no ano seguinte; as cabras da Grécia,
que devoram os jovens arbustos antes de poder desenvolver-se, deixaram nuas
todas as montanhas do pais. Essa “exploração rapace” levada a efeito pelos
animais desempenha um grande papel na transformação gradual das espécies, ao
obrigá-las a adaptar-se a alimentos que não são os habituais para elas, com o
que muda a composição química de seu sangue e se modifica toda a constituição
física do animal; as espécies já plasmadas desaparecem. Não há dúvida de que
essa exploração rapace contribuiu em alto grau para a humanização de nossos
antepassados, pois ampliou o número de plantas e as partes das plantas
utilizadas na alimentação por aquela raça de macacos que superava todas as
demais em inteligência e em capacidade de adaptação. Em uma palavra, a
alimentação, cada vez mais variada, oferecia ao organismo novas e novas
substâncias, com o que foram criadas as condições químicas para a transformação
desses macacos em seres humanos. Mas tudo isso não era trabalho no verdadeiro
sentido da palavra. O trabalho começa com a elaboração de instrumentos. E que
representam os instrumentos mais antigos, a julgar pelos restos que nos
chegaram dos homens pré-históricos, pelo gênero de vida dos povos mais antigos
registrados pela história, assim como pelo dos selvagens atuais mais
primitivos? São instrumentos de caça e de pesca, sendo os primeiros utilizados
também como armas. Mas a caça e a pesca pressupõem a passagem da alimentação
exclusivamente vegetal à alimentação mista, o que significa um novo passo de
sua importância na transformação do macaco em homem. A alimentação cárnea
ofereceu ao organismo, em forma quase acabada, os ingredientes mais essenciais
para o seu metabolismo. Desse modo abreviou o processo da digestão e outros
processos da vida vegetativa do organismo (isto é, os processos análogos ao da
vida dos vegetais), poupando, assim, tempo, materiais e estímulos para que
pudesse manifestar-se ativamente a vida propriamente animal. E quanto mais o
homem em formação se afastava do reino vegetal, mais se elevava sobre os
animais.
Da
mesma maneira que o hábito da alimentação mista converteu o gato e o cão
selvagens em servidores do homem, assim também o hábito de combinar a carne com
a alimentação vegetal contribuiu poderosamente para dar força física e
independência ao homem em formação. Mas onde mais se manifestou a influência da
dieta cárnea foi no cérebro, que recebeu assim em quantidade muito maior do que
antes as substâncias necessárias à sua alimentação e desenvolvimento, com o que
se foi tomando maior e mais rápido o seu aperfeiçoamento de geração em geração.
Devemos reconhecer — e perdoem os senhores vegetarianos — que não foi sem ajuda
da alimentação cárnea que o homem chegou a ser homem; e o fato de que, em uma
ou outra época da história de todos os povos conhecidos, o emprego da carne na
alimentação tenha chegado ao canibalismo (ainda no século X os antepassados dos
berlinenses, os veletabos e os viltses, devoravam os seus progenitores) é uma
questão que não tem hoje para nós a menor importância.
O
consumo de carne na alimentação significou dois novos avanços de importância
decisiva: o uso do fogo e a domesticação dos animais. O primeiro reduziu ainda
mais o processo da digestão, já que permitia levar a comida à boca, como se
disséssemos, meio digerida; o segundo multiplicou as reservas de carne, pois
agora, ao lado da caça, proporcionava uma nova fonte para obtê-la em forma mais
regular. A domesticação de animais também proporcionou, com o leite e seus
derivados, um novo alimento, que era pelo menos do mesmo valor que a carne
quanto à composição. Assim, esses dois adiantamentos converteram-se diretamente
para o homem em novos meios de emancipação. Não podemos deter-nos aqui em
examinar minuciosamente suas conseqüências.
O
homem, que havia aprendido a comer tudo o que era comestível, aprendeu também,
da mesma maneira, a viver em qualquer clima. Estendeu-se por toda a superfície
habitável da Terra, sendo o único animal capaz de fazê-lo por iniciativa
própria. Os demais animais que se adaptaram a todos os climas — os animais
domésticos e os insetos parasitas —não o conseguiram por si, mas unicamente
acompanhando o homem. E a passagem do clima uniformemente cálido da pátria
original para zonas mais frias, onde o ano se dividia em verão e inverno, criou
novas exigências, ao obrigar o homem a procurar habitação e a cobrir seu corpo
para proteger-se do frio e da umidade. Surgiram assim novas esferas de
trabalho, e com elas novas atividades, que afastaram ainda mais o homem dos
animais.
Graças
à cooperação da mão, dos órgãos da linguagem e do cérebro, não só em cada
indivíduo, mas também na sociedade, os homens foram aprendendo a executar
operações cada vez mais complexas, a propor-se e alcançar objetivos cada vez
mais elevados. O trabalho mesmo se diversificava e aperfeiçoava de geração em
geração, estendendo-se cada vez a novas atividades. A caça e à pesca veio
juntar-se a agricultura, e mais tarde a fiação e a tecelagem, a elaboração de
metais, a olaria e a navegação. Ao lado do comércio e dos ofícios apareceram,
finalmente, as artes e as ciências; das tribos saíram as nações e os Estados.
Apareceram o direito e a política, e com eles o reflexo fantástico das coisas
no cérebro do homem: a religião. Frente a todas essas criações, que se
manifestavam em primeiro lugar como produtos do cérebro e pareciam dominar as
sociedades humanas, as produções mais modestas, fruto do trabalho da mão,
ficaram relegadas a segundo plano, tanto mais quanto numa fase muito recuada do
desenvolvimento da sociedade (por exemplo, já na família primitiva), a cabeça
que planejava o trabalho já era capaz de obrigar mãos alheias a realizar o
trabalho projetado por ela. O rápido progresso da civilização foi atribuído
exclusivamente à cabeça, ao desenvolvimento e à atividade do cérebro. Os homens
acostumaram-se a explicar seus atos pelos seus pensamentos, em lugar de
procurar essa explicação em suas necessidades (refletidas, naturalmente, na
cabeça do homem, que assim adquire consciência delas). Foi assim que, com o
transcurso do tempo, surgiu essa concepção idealista do mundo que dominou o
cérebro dos homens, sobretudo a partir do desaparecimento do mundo antigo, e
continua ainda a dominá-lo, a tal ponto que mesmo os naturalistas da escola
darwiniana mais chegados ao materialismo são ainda incapazes de formar uma
idéia clara acerca da origem do homem, pois essa mesma influência idealista
lhes impede de ver o papel desempenhado aqui pelo trabalho.
Os
animais, como já indicamos de passagem, também modificam com sua atividade a
natureza exterior, embora não no mesmo grau que o homem; e essas modificações
provocadas por eles no meio ambiente repercutem, como vimos, em seus
causadores, modificando-os por sua vez. Nada ocorre na natureza em forma
isolada. Cada fenômeno afeta a outro, e é por seu turno influenciado por este;
e é em geral o esquecimento desse movimento e dessa interação universal o que
impede a nossos naturalistas perceber com clareza as coisas mais simples. Já
vimos como as cabras impediram o reflorestamento dos bosques na Grécia; em
Santa Helena, as cabras e os porcos desembarcados pelos primeiros navegantes
chegados à ilha exterminaram quase por completo a vegetação ali existente, com
o que prepararam o terreno para que pudessem multiplicar-se as plantas levadas
mais tarde por outros navegantes e colonizadores. Mas a influência duradoura
dos animais sobre a natureza que os rodeia é inteiramente involuntária e
constitui, no que se refere aos animais, um fato acidental. Mas, quanto mais os
homens se afastam dos animais, mais sua influência sobre a natureza adquire um
caráter de uma ação intencional e planejada, cujo fim é alcançar objetivos
projetados de antemão. Os animais destroçam a vegetação do lugar sem dar-se
conta do que fazem. Os homens, em troca, quando destroem a vegetação o fazem
com o fim de utilizar a superfície que fica livre para semear trigo, plantar
árvores ou cultivar a videira, conscientes de que a colheita que irão obter
superará várias vezes o semeado por eles. O homem traslada de um pais para
outro plantas úteis e animais domésticos, modificando assim a flora e a fauna
de continentes inteiros. Mais ainda: as plantas e os animais, cultivadas
aquelas e criados estes em condições artificiais, sofrem tal influência da mão
do homem que se tornam irreconhecíveis.
Não
foram até hoje encontrados os antepassados silvestres de nossos cultivos
cerealistas. Ainda não foi resolvida a questão de saber qual o animal que deu
origem aos nossos cães atuais, tão diferentes uns de outros, ou às atuais raças
de cavalos, também tão numerosos. Ademais, compreende-se de logo que não temos
a intenção de negar aos animais a faculdade de atuar em forma planificada, de
um modo premeditado. Ao contrário, a ação planificada existe em germe onde quer
que o protoplasma — a albumina viva — exista e reaja, isto é, realize
determinados movimentos, embora sejam os mais simples, em resposta a
determinados estímulos do exterior. Essa reação se produz, não digamos já na
célula nervosa, mas inclusive quando ainda não há célula de nenhuma espécie. O
ato pelo qual as plantas insetívoras se apoderam de sua presa aparece também,
até certo ponto, como um ato planejado, embora se realize de um modo totalmente
inconsciente. A possibilidade de realizar atos conscientes e premeditados
desenvolve-se nos animais em correspondência com o desenvolvimento do sistema nervoso
e adquire já nos mamíferos um nível bastante elevado. Durante as caçadas
organizadas na Inglaterra pode-se observar sempre a infalibilidade com que a
raposa utiliza seu perfeito conhecimento do lugar para ocultar-se aos seus
perseguidores, e como conhece e sabe aproveitar muito bem todas as vantagens do
terreno para despistá-los. Entre nossos animais domésticos, que chegaram a um
grau mais alto de desenvolvimento graças à sua convivência com o homem podem
ser observados diariamente atos de astúcia, equiparáveis aos das crianças, pois
do mesmo modo que o desenvolvimento do embrião humano no ventre materno é uma
réplica abreviada de toda a história do desenvolvimento físico seguido através
de milhões de anos pelos nossos antepassados do reino animal, a partir do
estado larval, assim também o desenvolvimento espiritual da criança representa
uma réplica, ainda mais abreviada, do desenvolvimento intelctual desses mesmos
antepassados, pelo menos dos mais próximos. Mas nem um só ato planificado de
nenhum animal pôde imprimir na natureza o selo de sua vontade. Só o homem pôde
fazê-lo.
Resumindo:
só o que podem fazer os animais é utilizar a natureza e modificá-la pelo mero
fato de sua presença nela. O homem, ao contrário, modifica a natureza e a
obriga a servir-lhe, domina-a. E ai está, em última análise, a diferença
essencial entre o homem e os demais animais, diferença que, mais uma vez,
resulta do trabalho.
Contudo,
não nos deixemos dominar pelo entusiasmo em face de nossas vitórias sobre a
natureza. Após cada uma dessas vitórias a natureza adota sua vingança. É
verdade que as primeiras conseqüências dessas vitórias são as previstas por
nós, mas em segundo e em terceiro lugar aparecem conseqüências muito diversas,
totalmente imprevistas e que, com freqüência, anulam as primeiras. Os homens
que na Mesopotâmia, na Grécia, na Ásia Menor e outras regiões devastavam os
bosques para obter terra de cultivo nem sequer podiam imaginar que, eliminando
com os bosques os centros de acumulação e reserva de umidade, estavam
assentando as bases da atual aridez dessas terras. Os italianos dos Alpes, que
destruíram nas encostas meridionais os bosques de pinheiros, conservados com
tanto carinho nas encostas setentrionais, não tinham idéia de que com isso
destruíam as raízes da indústria de laticínios em sua região; e muito menos
podiam prever que, procedendo desse modo, deixavam a maior parte do ano secas
as suas fontes de montanha, com o que lhes permitiam, chegado o período das
chuvas, despejar com maior fúria suas torrentes sobre a planície. Os que
difundiram o cultivo da batata na Europa não sabiam que com esse tubérculo
farináceo difundiam por sua vez a escrofulose. Assim, a cada passo, os fatos
recordam que nosso domínio sobre a natureza não se parece em nada com o domínio
de um conquistador sobre o povo conquistado, que não é o domínio de alguém
situado fora da natureza, mas que nós, por nossa carne, nosso sangue e nosso
cérebro, pertencemos à natureza, encontramo-nos em seu seio, e todo o nosso
domínio sobre ela consiste em que, diferentemente dos demais seres, somos
capazes de conhecer suas leis e aplicá-las de maneira adequada.
Com
efeito, aprendemos cada dia a compreender melhor as leis da natureza e a
conhecer tanto os efeitos imediatos como as conseqüências remotas de nossa
intromissão no curso natural de seu desenvolvimento. Sobretudo depois dos
grandes progressos alcançados neste século pelas ciências naturais, estamos em
condições de prever e, portanto, de controlar cada vez melhor as remotas
conseqüências naturais de nossos atos na produção, pelo menos dos mais
correntes. E quanto mais isso seja uma realidade, mais os homens sentirão e
compreenderão sua unidade com a natureza, e mais inconcebível será essa idéia
absurda e antinatural da antítese entre o espírito e a matéria, o homem e a
natureza, a alma e o corpo, idéia que começa a difundir-se pela Europa sobre a
base da decadência da antigüidade clássica e que adquire seu máximo
desenvolvimento no cristianismo.
Mas,
se foram necessários milhares de anos para que o homem aprendesse, em certo
grau, a prever as remotas conseqüências naturais no sentido da produção, muito
mais lhe custou aprender a calcular as remotas conseqüências sociais desses
mesmos atos. Falamos acima da batata e de seus efeitos quanto à difusão da
escrofulose. Mas que importância pode ter a escrofulose, comparada com os
resultados que teve a redução da alimentação dos trabalhadores a batatas
puramente sobre as condições de vida das massas do povo de países inteiros, com
a fome que se estendeu em 1847 pela Irlanda em conseqüência de uma doença
provocada por esse tubérculo e que levou à sepultura um milhão de irlandeses
que se alimentavam exclusivamente, ou quase exclusivamente, de batatas e
obrigou a que emigrassem para além-mar outros dois milhões? Quando os árabes
aprenderam a distilar o álcool, nem sequer ocorreu-lhes pensar que haviam
criado uma das armas principais com que iria ser exterminada a população
indígena do continente americano, então ainda desconhecido. E quando mais tarde
Colombo descobriu a América não sabia que ao mesmo tempo dava nova vida à
escravidão, há muito tempo desaparecida na Europa, e assentado as bases do
tráfico dos negros. Os homens que nos séculos XVII e XVIII haviam trabalhado
para criar a máquina a vapor não suspeitavam de que estavam criando um
instrumento que, mais do que nenhum outro, haveria de subverter as condições
sociais em todo o mundo e que, sobretudo na Europa, ao concentrar a riqueza nas
mãos de uma minoria e ao privar de toda propriedade a imensa maioria da
população, haveria de proporcionar primeiro o domínio social e político à
burguesia, e provocar depois a luta de classe entre a burguesia e o
proletariado, luta que só pode terminar com a liquidação da burguesia e a
abolição de todos os antagonismos de classe. Mas também aqui, aproveitando uma
experiência ampla, e às vezes cruel, confrontando e analisando os materiais
proporcionados pela história, vamos aprendendo pouco a pouco a conhecer as
conseqüências sociais indiretas e mais remotas de nossos atos na produção, o
que nos permite estender também a essas conseqüências o nosso domínio e o nosso
controle.
Contudo,
para levar a termo esse controle é necessário algo mais do que o simples
conhecimento. É necessária uma revolução que transforme por completo o modo de
produção existente até hoje e, com ele, a ordem social vigente.
Todos
os modos de produção que existiram até o presente só procuravam o efeito útil
do trabalho em sua forma mais direta e Imediata. Não faziam o menor caso das
conseqüências remotas, que só surgem mais tarde e cujos efeitos se manifestam
unicamente graças a um processo de repetição e acumulação gradual. A primitiva
propriedade comunal da terra correspondia, por um lado, a um estádio de
desenvolvimento dos homens no qual seu horizonte era limitado, em geral, às
coisas mais imediatas, e pressupunha, por outro lado, certo excedente de terras
livres, que oferecia determinada margem para neutralizar os possíveis
resultados adversos dessa economia primitiva. Ao esgotar-se o excedente de
terras livres, começou a decadência da propriedade comunal. Todas as formas
mais elevadas de produção que vieram depois conduziram à divisão da população
em classes diferentes e, portanto, no antagonismo entre as classes dominantes e
as classes oprimidas. Em conseqüência, os interesses das classes dominantes
converteram-se no elemento propulsor da produção, enquanto esta não se limitava
a manter, bem ou mal, a mísera existência dos oprimidos.
Isso
encontra sua expressão mais acabada no modo de produção capitalista, que
prevalece hoje na Europa ocidental. Os capitalistas individuais, que dominam a
produção e a troca, só podem ocupar-se da utilidade mais imediata de seus atos.
Mais ainda: mesmo essa utilidade — porquanto se trata da utilidade da mercadoria
produzida ou trocada — passa inteiramente ao segundo plano, aparecendo como
único incentivo o lucro obtido na venda.
*
* *
A
ciência social da burguesia, a economia política clássica, só se ocupa
preferentemente daquelas conseqüências sociais que constituem o objetivo
imediato dos atos realizados pelos homens na produção e na troca. Isso
corresponde plenamente ao regime social cuja expressão teórica é essa ciência.
Porquanto os capitalistas isolados produzem ou trocam com o único fim de obter
lucros imediatos, só podem ser levados em conta, primeiramente, os resultados
mais próximos e mais imediatos. Quando um industrial ou um comerciante vende a
mercadoria produzida ou comprada por ele e obtém o lucro habitual, dá-se por
satisfeito e não lhe interessa de maneira alguma o que possa ocorrer depois com
essa mercadoria e seu comprador. O mesmo se verifica com as conseqüências
naturais dessas mesmas ações. Quando, em Cuba, os plantadores espanhóis queimavam
os bosques nas encostas das montanhas para obter com a cinza um adubo que só
lhes permitia fertilizar uma geração de cafeeiros de alto rendimento pouco lhes
importava que as chuvas torrenciais dos trópicos varressem a camada vegetal do
solo, privada da proteção das arvores, e não deixassem depois de si senão
rochas desnudas! Com o atual modo de produção, e no que se refere tanto às
conseqüências naturais como às conseqüência sociais dos atos realizados pelos
homens, o que interessa prioritariamente são apenas os primeiros resultados, os
mais palpáveis. E logo até se manifesta estranheza pelo fato de as
conseqüências remotas das ações que perseguiam esses fins serem multo
diferentes e, na maioria dos casos, até diametralmente opostas; de a harmonia entre
a oferta e a procura converter-se em seu antípoda, como nos demonstra o curso
de cada um desses ciclos industriais de dez anos, e como puderam convencer-se
disso os que com o “crack” viveram na Alemanha um pequeno prelúdio; de a
propriedade privada baseada no trabalho próprio converter-se necessariamente,
ao desenvolver-se, na ausência de posse de toda propriedade pelos
trabalhadores, enquanto toda a riqueza se concentra mais e mais nas mãos dos
que não trabalham; de [...](2)
- Friedrich Engels
Notas:
(1)
Notas Sir William Thomson. grande autoridade na matéria, calculou em pouco mais
de cem milhões de anos o tempo transcorrido desde o momento em que a Terra se
esfriou o suficiente para que nela pudessem viver as plantas e os animais.
(Nota
de Engels) Engels refere-se à crise econômica de 1873/1874. (N. da R)