Jorge
Escosteguy: Boa noite. Estamos começando mais um Roda Viva pela TV Cultura
de São Paulo. Hoje é um Roda Viva especial, gravado fora dos estúdios.
Portanto, os telespectadores não poderão fazer perguntas por telefone. É um
Roda Viva especial, porque trazemos um convidado especial e, de certa forma,
difícil de ser entrevistado até pelas preocupações com a segurança da sua
equipe. Nós vamos entrevistar hoje, o presidente de Cuba, Fidel Castro.
Para entrevistar
Fidel Castro esta noite no Roda Viva nós convidamos os seguintes jornalistas:
Márcio Chaer, do Jornal do Brasil; Clóvis Rossi, da Folha de S. Paulo; José
Antônio Severo, da Gazeta Mercantil; e Alceu Náder, do Jornal da Tarde. Esta é
a segunda visita que Fidel Castro faz ao país. Há trinta anos ele governa Cuba
e tem se tornado, ao longo dos anos, uma espécie de inspiração ou mito para os
movimentos de esquerda na América Latina, junto com Ernesto Che Guevara. Nesses
últimos meses, de Perestroika no resto do mundo, de certa forma Fidel Castro
tem sido colocado no meio de uma polêmica: sobre que mudanças poderão ocorrer
em Cuba diante dos reflexos da Perestroika, principalmente no leste Europeu.
Boa noite,
presidente. Eu gostaria primeiro de lhe fazer uma pergunta específica sobre a
questão de segurança. O senhor chegou ao Brasil cercado de certa forma por um
aparato de segurança muito grande. O senhor tem medo de algum atentado? Medo de
que alguém atente contra a sua vida?
Fidel
Castro: Eu não tenho temor de um atentado. Mas pode ser que os
responsáveis por minha segurança tenham medo. Falou-se também de algumas armas
que teriam vindo de lá e que foram devolvidas. O que eu sei... Eu não me ocupo
disso. Sou mesmo quem protesta contra isso... A política que se adotou é que
cada uma das delegações poderia tomar suas medidas de segurança, além das
medidas de segurança que tomassem as autoridades do governo. Comigo há alguns
antecedentes. Durante muito tempo a CIA e o governo dos Estados Unidos tentaram
me eliminar fisicamente. Isso foi reconhecido no próprio Senado dos Estados
Unidos. E eles não abandonaram esta prática. Assim, cada vez que eu me
movimento, os setores contra-revolucionários, os inimigos do país, geralmente
fazem planos. Sempre têm a esperança de caçar Castro. Em um lugar ou em outro.
E isso, naturalmente, desperta inquietações nos companheiros em nosso país
quanto à segurança; e tratam de tomar o máximo possível de medidas de
segurança. Agora eu, como disse recentemente, confio nas autoridades do país.
Quem pode dar verdadeiras medidas de segurança são as autoridades do país. Foi
assim na minha viagem ao Equador, ao México, à Venezuela e ao Brasil. Se
dependesse de mim, eu não necessitaria de qualquer tipo de segurança. Mas os
companheiros acham que devem ajudar no equipamento, numa série de coisas. Mas
minha segurança aqui no Brasil quem garante são as autoridades do Brasil. Pude
observar muito profissionalismo, muita organização, eficiência no pessoal da
segurança.
Jorge Escosteguy: O senhor
tem acompanhado, de certa forma, esses movimentos no Leste Europeu,
principalmente na União Soviética, a chamada Perestroika e os movimentos de
liberalização em outros países europeus. Que reflexos o senhor acha que esses
movimentos terão em Cuba? Há alguma perspectiva de mudanças a nível
institucional no seu país?
Fidel Castro: Bom,
tudo isso é um fenômeno que ganhou destaque recentemente. Eu não tenho certeza
de que os que elaboraram as idéias na União Soviética, com objetivo correto de
aperfeiçoar o socialismo, o que não pode ser questionado, sabiam que
repercussões isso poderia ter na Europa Oriental. Porque realmente o processo
que está ocorrendo na Europa Oriental é um processo de desmantelamento do
socialismo.
José Antônio
Severo: O senhor acredita que os países do Leste Europeu entrarão no
capitalismo, simplesmente, ou eles manterão muitas das chamadas conquistas do
socialismo?
Fidel
Castro: Acho que havia erros que deveriam ser corrigidos. Havia coisas
que deveriam ser superadas. Mas o fenômeno que realmente está ocorrendo é o
desmantelamento do socialismo. Em alguns com maior força que em outros. Em
países como a Polônia já se está fazendo um desenvolvimento capitalista. E
inclusive orientado por especialistas norte-americanos. Privatizar a indústria,
estabelecer uma economia de mercado. E o que é o capitalismo se não a
propriedade privada e a economia de mercado? Ou agora se chama de outra
maneira?
Clóvis Rossi: Os erros
que havia nesses países: há também em Cuba esse tipo de erro e quais são?
Fidel Castro: Eu creio
que em Cuba havia poucos erros como os que existiam nesses países. E vou
explicar por que. Nós nunca cometemos muitos dos erros que se cometeram lá na
Europa Oriental. Posso dar um exemplo. E sempre diferenciando a União Soviética
dos países socialista da Europa. Porque são situações diferentes. Dois papéis
diferentes jogados na história. Na URSS, houve uma revolução autêntica. Não foi
uma revolução importada de algum lugar. Como na China houve uma revolução
autêntica. Como em Cuba houve uma revolução autêntica. E as revoluções
autênticas que nascem do povo são diferentes daquelas revoluções que ocorrem
por razões conjunturais. E não há dúvidas de que as revoluções socialistas nos
países do Leste ocorreram por razões conjunturais, em função do final da II
Guerra Mundial. Não esqueçam que mesmo no caso da República Democrática Alemã
[Alemanha Oriental], o socialismo se constrói a partir das ruínas do fascismo
na parte menos desenvolvida da antiga Alemanha. Mas, na União Soviética,
ocorreram problemas como o stalinismo. E esse fenômeno do stalinismo nunca se
conheceu em nosso país, nem nada parecido. De abuso de autoridade, de crimes
que evidentemente se cometeram na URSS. Fizeram grandes coisas por um lado.
Mas, de outro, ocorreram muitos abusos de autoridade, grandes erros nesse
terreno que foram reconhecidos. Nós não temos que retificar um problema que não
conhecemos, que não sofremos. Quem conhece a verdadeira história de Cuba - não
a que escrevem os ianques - sabe como são as coisas em Cuba. Em nosso país se
criou um sentimento muito forte contra todo o abuso de autoridade, pois nosso
país conheceu isso, conheceu abusos, torturas, crimes. E nós resolvemos
defender a Revolução sem abuso do poder, sem cometer violências contra a pessoa
humana. Temos leis e tribunais e se aplicam as punições e algumas são duras.
Mas nunca saímos da lei. Em nosso país não há um só caso de desaparecido. Em
nosso país não há um só caso de assassinato político. Mas posso dizer mais - e
digam o que digam mil vezes na propaganda imperialista - em nosso país nunca
houve homem torturado. Porque os primeiros a não admitir isso seríamos nós, os
revolucionários, os que nos educamos no ódio contra isso. Nosso povo não é um
povo capaz de ser cúmplice de fatos dessa natureza. Temos uma folha na história
de nosso país que creio que um dia a história vai contar. Creio que não há um
país no mundo que seja mais cuidadoso e mais escrupuloso no exercício do poder.
Na URSS, se criou o fenômeno do governo unipessoal e se cometeram abusos
historicamente comprovados. E fenômeno como o stalinismo, nós não conhecemos em
Cuba.
Jorge Escosteguy: O senhor
mencionou o poder unipessoal. No caso de Cuba, a sua presença durante três
décadas não seria um exemplo de unipersonalismo?
Fidel
Castro: Poderia parecer, porque simplesmente me coube jogar um papel.
Então, tudo se atribui a Castro. Dizem: a revolução de Castro, o governo de
Castro. Castro decidiu isso. Eu tinha um poder unipessoal como o comandante-em-chefe
das forças revolucionárias quando estávamos na luta. E ainda assim tínhamos uma
direção coletiva. Desde que se organizou nosso movimento, desde que éramos dez
ou doze, já tínhamos uma direção coletiva de vários membros da direção do movimento.
E três de nós éramos os executivos. Os que tinham o segredo das coisas
fundamentais. Depois vem a guerra, eu era chefe da expedição. Tinha a
responsabilidade de tomar as decisões, como em qualquer ação desta natureza.
Depois, na "Sierra Maestra", era chefe das unidades de combate. Mas
ainda assim nosso movimento tinha uma direção. E as questões políticas
fundamentais eram analisadas e discutidas. E mais de uma vez nos enganamos. E
mais de uma vez eu tinha um critério e a direção tinha outro. E cumpríamos os
critérios da direção. Quando triunfa a Revolução em Cuba, eu sou
comandante-em-chefe de um exército vitorioso que foi dirigido na guerra, as
responsabilidade das operações na guerra eram minhas. Mesmo assim o primeiro
que fizemos tão logo termina a guerra, foi construir uma direção coletiva. E
depois, quando unimos todas as organizações revolucionárias, após um longo
processo, foi constituída uma direção da Revolução. E desde então tem sido a
prática em nosso país, quando se fundou o partido, o Comitê Central, direção
coletiva do partido, a direção coletiva do Estado. Não temos um governo
presidencialista. Nós temos uma direção coletiva. Eu sou o presidente do
Conselho de Estado. Não vou negar que tenho autoridade, que tenho influência.
Bom, porque todos que fundaram a Revolução têm autoridade e têm influência. Se
não cometeram grandes erros, se conseguem contar com a confiança dos outros.
Nesse sentido tenho influência grande. Mas as decisões estratégicas
fundamentais em nosso país são tomadas coletivamente. O presidente dos Estados
Unidos tem muito mais atribuições do que eu. Incomparavelmente mais
atribuições. Anda inclusive com uma maletinha onde estão as chaves
atômicas e pode começar uma guerra nuclear sem consultar ninguém. O presidente dos
Estados Unidos tem poderes que nem Nero tinha. Nero é acusado de ter incendiado
Roma. Nero podia incendiar o mundo. E temos nos Estados Unidos um presidente
com muito mais poder que um imperador romano. Ele pode prestar contas depois.
Vinte ou trinta dias depois. Imaginem, na era nuclear o presidente dando contas
vinte ou trinta dias depois de seus atos. Invade tal país e depois presta
contas. Faz a guerra... eu não tenho nenhuma dessas atribuições, nem parecidas.
E digo a vocês que os presidentes da América Latina têm mais direitos
presidenciais do que eu. Eu posso ter influência. Não nego que a tenho. Mas não
tenho essas atribuições, não gosto de usar e muito menos de abusar das
atribuições que me conferem a lei e a Constituição. E não só a lei e a Constituição,
mas nossos próprios princípios, nossas normas históricas.
Alceu
Náder: Levando em conta que o ser humano é mortal, o que será de Cuba
depois de Fidel?
Fidel Castro: Bom,
creio que se depois de Fidel, Cuba não fosse nada, que se depois de Fidel a revolução
não pudesse ir adiante, o trabalho de nosso povo durante trinta anos teria sido
inútil. Primeiro, isso me tiraria o sono, se não confiasse no povo, se não
confiasse nas gerações de milhares e dezenas de milhares e de centenas de
milhões de jovens que se educaram, que receberam um nível educacional,
cultural, científico, político... Porque o importante é que os homens
compartilhem idéias, um pensamento, um estilo de governo, uma tradição. Eu
tenho uma confiança plena e absoluta, porque o que fizemos foi promover muitos
novos quadros e também distribuir funções. Eu não sou um indivíduo que gosta de
centralizar tudo. Em toda a minha vida distribui o máximo possível as funções
da direção e administração do Estado e da direção política do país. E há um nível
de atribuições muito grande. Eu coordeno, ajudo, estimulo, inspiro, falo... Mas
em nosso país há muita gente que aprendeu qual é o seu ofício e suas funções.
Estamos organizados e preparados para isso. Assim, se eu por enfermidade não
puder exercer as funções, não seria nenhum problema. Se eu morro, não seria
nenhum problema. Porque não creio no providencialismo. Sei que os homens têm um
papel na história. Mas creio que o papel na história quem tem são os povos. E
um homem não é nada sem o povo. Não há nada sem a colaboração de centenas de
milhares, de milhões de pessoas. Nós temos instituições. Teria sido talvez pior
no meio da guerra, ou nos primeiros tempos, ou em certos momentos muitos
difíceis. Mas, na medida em que passa o tempo, é extraordinária a quantidade de
valores que sobem e que nós promovemos. E nossa esperança inclusive é nos que
venham depois de nós... Como aconteceu em muitos outros países. Tivemos por
exemplo Juarez (Benito Juarez; presidente do México entre 1864-1872. Seu
governo é caracterizada pela promulgação das Leis de Reforma), grandes
dirigentes na Revolução Mexicana. Depois, a Revolução Mexicana se
institucionalizou e manteve a continuidade de governo durante mais de cinqüenta
anos. Mudaram os homens, mas não mudou o partido. Por isso as instituições são
mais importantes. Há um ditado que diz: o rei morreu, viva o rei. É possível
que os homens... e como regra os homens são de si tudo o que são capazes quando
assumem uma responsabilidade. Não há nada melhor do que dar responsabilidade
aos homens. Então os homens demonstram do que são capazes. Eu nunca acreditei
que possa haver um homem superior aos demais. Ao contrário, eu creio na
capacidade mais ou menos igual de todos os homens... E é a oportunidade que faz
os homens exercerem seu papel. Talvez venha um dia aqui a São Paulo, espero que
assim seja, que venham homens que tenham bom... não tanta experiência, mas que
sejam mais capazes que eu para representar o meu país e para fazer o trabalho
que eu estou fazendo agora.
Clóvis Rossi: O senhor já
criticou em vários discursos o que chama de desmantelamento do socialismo em
países do leste Europeu. Mas não é apenas no Leste Europeu, os partidos
comunistas do Ocidente e até um herói estrangeiro da revolução cubana, como o
presidente da Etiópia, o presidente Menristo, da Etiópia, acaba de fazer uma
autocrítica condenando o sistema de centralização econômica.
Fidel Castro: A
posição que eu tenho em relação aos meus erros do socialismo é de que esses
erros têm que ser superados. Eu não me oponho a nada que seja para aperfeiçoar
o socialismo. Nem na URSS, nem em nenhuma parte.
Clóvis Rossi: Quais
são...
Fidel Castro: Agora...[fazendo
silêncio para Clóvis Rossi]...Nós temos corrigido erros. E antes que se
falasse em Perestroika, no último congresso do nosso partido, que foi em
princípio de 1986, há mais de quatro anos, nós colocamos a questão da
retificação de erros e tendências negativas. Venho fazendo um forte trabalho
nessa direção. Isso se referia principalmente às questões relacionadas com a
construção do socialismo. Porque mesmo nossa Revolução tendo sido muito
criativa e muito autóctone e cometeu erros por sua própria conta... Cometeu nos
primeiros anos da Revolução no que se refere à organização das empresas, à
utilização dos recursos. Nós num certo momento quase tínhamos desprezo pela
contabilidade. Cometemos erros desse tipo. Eu diria que tentamos acelerar o
processo. Quisemos saltar etapas históricas. Estávamos quase querendo construir
uma sociedade comunista, e não uma sociedade socialista. Isso se explica,
porque ocorreu a revolucionários de qualquer época. Houve conseqüências
positivas, mas também negativas. E quando nós fomos retificar aqueles erros,
cometemos o erro de copiar muitas coisas do socialismo que aparentemente já
estavam provadas pela vida, pela história, pelas experiências na URSS e em
outros países socialista. E copiamos. Para entender bem isso, é preciso
remontar à época de Che (Guevara), quando ele foi nomeado ministro da Indústria
e viu-se na necessidade de organizar a produção socialista... Aquelas
indústrias. Como organizá-las. Ia ser com conceitos de rentabilidade, os
salários, os prêmios, os estímulos materiais, os estímulos morais... Então eu
posso dizer e assegurar categoricamente que minha admiração pelo Che cresceu na
medida em que vejo e compreendo que foi um grande visionário, um grande
profeta. Porque nos primeiros anos da Revolução, e quando se viu frente à
tarefa, começou a questionar o método de construção do socialismo que estava
estabelecido na URSS e nos países socialistas. Ele dizia que não se podiam
utilizar as categorias do capitalismo na construção do socialismo. Estava
contra uma série desses conceitos. Ele não viveu o tempo suficiente porque sua
impaciência de lutador levou-o a entrar em ação de novo e a morrer em combate.
Eu digo que foi uma perda muito grande. Na época nós víamos tudo isso como uma
coisa mais ou menos acadêmica. Entre o método orçamentário que o Che propunha e
o método chamado de autofinanciamento que prevalecia, que se aplicava nos
países socialistas. Quando nós em 1975 copiamos muito isso, tomamos a decisão
no momento em que corrigíamos os erros de idealismo e utilizamos esse método.
Era o único provado. Começaram a surgir problemas. No começo não nos demos conta,
só com o correr dos anos, da conseqüência altamente negativa para nosso país da
aplicação desses métodos. Por isso, em 75 resolvemos dar uma virada. Não uma
virada no sentido de desbaratar e desorganizar tudo o que havia, e sim
retificando progressivamente e sem trauma e sem desorganizar o país...
retificando aqueles erros. E às vezes fomos fazendo setor por setor. Ainda não
terminou esse processo, mas estamos indo muito bem. E os resultados disso são
realmente extraordinários. Mas veja, naqueles países, é claro que nem tudo o
que se fez naqueles países foi ruim. Eu não poderia dizer... Estou em desacordo
com uma crítica destrutiva da história da URSS.
José Antônio
Severo: O Estado cubano é mais eficiente do que as máquinas, os aparatos
do Estado do Leste Europeu? Ou seja, você acha que o cubano é mais eficiente
que os seus correspondentes no Leste?
Fidel Castro: Antes de
responder gostaria que me deixasse terminar a idéia anterior... de que eu sou
contrário a uma política destrutiva da história e dos grandes méritos da União
Soviética. Porque esse povo resistiu à intervenção. defendeu a primeira
revolução, deu vinte milhões de vida na luta contra o fascismo. A contribuição
da União Soviética foi muito grande. Deu condições de liberação aos países que
estavam ainda colonizados. A União Soviética foi capaz de alcançar as armas
nucleares num momento em que estava em condições de inferioridade. Capaz de
participar da corrida espacial. Há grandes contribuições. É um país que produz
mais de 600 milhões de toneladas de petróleo. É o maior produtor de petróleo do
mundo, é o maior produtor de gás no mundo, quase um trilhão de metros cúbicos.
Construiu linhas férreas, oleodutos, gasodutos, sistema energético. É uma coisa
colossal. Eles construíram no meio do bloqueio, de situações difíceis. Vamos
admitir os erros, mas temos que reconhecer também os grandes méritos desse
país. Eu penso que na medida em que foram empregados os mecanismos do
capitalismo, começaram os problemas. Foram capazes de conquistar o espaço, mas
não foram capazes de faze um bom par de sapatos.
[risos]
Fidel Castro: Foram capazes de
fazer um foguete que chegasse a Vênus, mas não faziam boas roupas. Se atrasarm
em alguns campos, como o da saúde e cometeram erros no campo da educação. Houve
de tudo. Mas... Foram incapazes de resolver alguns problemas. Creio que tinham
um planejamento rígido. Muito rígido. Eu não posso dizer que nosso Estado
funciona, melhor, assim, de forma genérica. Mas posso dizer que funciona melhor
em muitas coisas. No campo da saúde pública funciona melhor que qualquer Estado
socialista. E está a caminho... Funciona melhor não só que os países
socialistas, mas funciona melhor que grande número de países capitalistas.
Nosso sistema de saúde é superior ao dos Estados Unidos, digamos... apesar dos
recursos tecnológicos e científicos daquele país, nosso sistema de educação
funciona melhor, já não digo que dos países socialistas. Funciona melhor que o
dos Estados Unidos. E os índices de analfabetismo são maiores nos Estados
Unidos que em Cuba. Os problemas de lacunas culturais e políticas e de
instrução que tem um cidadão médio nos Estados Unidos... ele está muito abaixo
do nível de instrução do nosso país. Já não nos comparamos a países do Terceiro
Mundo em muitos desses índices. Porque temos uma mortalidade infantil de 11,1
pontos, estamos nos comparando a países mais desenvolvidos. Ficam alguns poucos
com índice melhor e nós pensamos que com as medidas que estamos adotando vamos
chegar e estar entre os primeiros do mundo. A instituição do médico da família,
criada em nosso país, não tem em nenhum país socialista e em nenhum
capitalista, do jeito que nós temos. Nas atividades esportivas, digamos...
Nosso país tem os melhores per capita do mundo em medalhas ganhas em olimpíadas,
competições internacionais, em tudo... Apesar de ser um país de apenas dez
milhões de habitantes. Que não era nada, nem se ouvia falar do nosso país neste
campo... E creio que estamos introduzindo na organização da produção, conceitos
que são muito superiores aos dos países socialistas. E estes conceitos
começaram a dar frutos. Estamos num processo de retificação e de
aperfeiçoamento de nosso Estado e de nosso sistema. Nós não temos o sistema de
eleição como na União Soviética, em que se têm o candidato único nos distritos
e este é o candidato. Nós não fazemos nada disso. Nós estabelecemos um sistema
de eleição em que não é o partido que postula, mas as massas de vizinhos.
Reunidos numa circunscrição, podem postular até oito candidatos, no máximo, e um
mínimo de dois. E temos um segundo turno e muitas vezes há o segundo turno. Aí
se elegem os delegados que nomeiam os poderes do Estado. O municipal, o
provincial, o nacional. E mais de 60 por cento da Assembléia Nacional são
delegados eleitos desta forma, na base, isso não fizeram outros países.
Acontece que isso não se sabe... Porque desgraçadamente se conhece muito pouco.
Se conhece tudo o que os Estados Unidos queiram... seus colossais meios de
comunicação de massa, sua televisão... vocês sabem porque são da televisão. Mas
vocês não poderiam me dizer agora o que está acontecendo na Somália. Se há um
acontecimento no Egito, estou certo que vocês têm imediatamente a câmera e o
satélite para informar em São Paulo o que ocorre no Egito, ou dizem eles que ocorre
no Egito. Têm uma quantidade de recursos fabulosa, enorme, mobilizaram tudo, e
o que se conhece no mundo é o que eles dizem. Se um país pequeno não tem esses
recursos, é muito difícil fazer conhecer seu ponto de vista, sua verdade. E eu
ficava assombrado com a ignorância que há em geral no mundo sobre o que ocorre
em nosso país. E alguns nos criticam, porque não divulgam mais. E eu digo: mas
com o quê e como? Se... bom, temos uma oportunidade como esta, magnífica, eu
posso falar com o povo brasileiro, neste caso com uma grande população, de um
grande país, através desses meios. Porque estou aqui, estou conversando com
vocês. Mas eu não posso me encontrar com vocês todos os dias. O que eu digo em
Cuba as pessoas não sabem em São Paulo. A não ser um telegrama de uma das
grandes agências transnacionais ou o que os Estados Unidos enviam por satélite.
Márcio Chaer: Por todas
as informações que se tem aqui no Brasil, se houvesse uma eleição para
presidente hoje em Cuba, o senhor ganharia. Por que o senhor não faz essa
eleição? Eu gostaria de saber se o senhor teme que um processo eleitoral vá
provocar um processo de desmantelamento como o senhor diz.
Fidel
Castro: Se dissesse que sim, que ganho as eleições de forma absoluta,
não haveria outro argumento além do que eu estou dizendo. Qual seria sua
validade? Eu tenho que me ater a outros enfoques... e dizer o seguinte: Se a
Revolução não tivesse o apoio absolutamente majoritário do povo, não conseguiria
se manter por mais de 30 anos, frente ao país mais poderoso da Terra, que
representa uma ideologia, que tem os meios de comunicação mais sofisticados que
pode ter um país, que tem um poderio econômico enorme, que nos bloqueou por
todos os lados, que nos ameaçou... E o povo resistiu. Resistiu a todas a
campanhas de subversão, resistiu à invasão mercenária de Giron (Baia dos
Porcos), resistiu à ameaça de guerra nuclear em 1962 e resistiu a anos de
bloqueio e agressões. Este pequeno país tem colaborado com outros países com
médicos, professores... mais de 400 mil pessoas de Cuba prestam ajuda
internacionalista em dezenas de países do mundo. Só um povo com uma alta
consciência, alta cultura, faz isso. Quando os nicaragüenses nos pediram mil
professores, apareceram 30 mil voluntários. Foram dois mil porque era o
necessário no começo da Revolução. E quando os contras mataram alguns
professores, se ofereceram cem mil. Pergunto se há algum povo no mundo capaz de
praticar a solidariedade nesta escala. E eu posso dizer, por exemplo... não
tomem isso como uma falta de modéstia... Se hoje alguma parte do mundo precisar
de voluntários, como professores, médicos, enfermeiras, técnicos, Cuba sozinha
ofereceria seguramente o dobro ou o triplo que todo o resto da América Latina
junta...
[interrompido]
Fidel
Castro:...Porque em nosso país não se têm apenas os votos. Porque
aqui não se sabe que em Cuba há uma Constituição. Aqui não se sabe que em Cuba
há uma eleição a cada dois anos e meio. Ignora-se. Porque em nosso país o povo
não tem apenas os votos. Tem as armas. Nosso país é um povo todo organizado,
milhões de pessoas, homens e mulheres constituem o sistema defensivo de nosso
povo... Não só um voto.
[ ]: O senhor
considera que Cuba está em guerra...?
Fidel Castro: Para que
usem este direito a cada dois anos ninguém mais se lembre dele. Em nosso país,
o delegado eleito pelo povo e os representantes têm que estar prestando contas
incessantemente de sua gestão, e podem ser cassados. Mas, além disso, o povo
tem as armas. Os estudantes têm as armas, os operários têm as armas, os
camponeses, todos os cidadãos têm instrução militar. Os homens e as mulheres.
Os brancos e os negros, a juventude. Poderia ser oprimido um povo, poderia
aceitar um governo por 24 horas, por uma semana, uma sociedade que tem, não só
os votos, mas também as armas? Às vezes me perguntam o que estaria ocorrendo na
Espanha, por exemplo, se ali, em outros lugares, mesmo na Europa que os reprime
com cães, com bombas de gás lacrimogêneo. Em nosso país jamais se usou um gás
lacrimogêneo, um cão, um policial com máscara e capacete. Isso não se conhece
lá. Como todos os dias se pode ver isso no mundo capitalista desenvolvido tão
democrático... Que garantias têm quando há milhares de operários em greve ou
saem em uma manifestação e são reprimidos de maneira cruel. As revistas e os
jornais estão cheios dessas notícias. Jamais a Revolução fez isso. Porque há um
povo unido. Entendam que nós somos uma fortaleza sitiada. Um povo unido,
cercado pelos Estados Unidos. Então esse povo se defende. E são as massas, o
povo organizado, as mulheres, as crianças, os pioneiros, os estudantes de nível
médio, de nível superior. Isso é uma realidade. Há uma pátria a defender, uma
independência, uma grande obra social a defender. Por desgraça os
sandinistas não tiveram tempo de fazer essa obra, não deixaram, com a guerra
suja que lhes custou dezenas de milhares de vida, com o bloqueio. Mas vocês
devem considerar que se começamos a discutir aqui e trazemos alguns dados
estatísticos da situação social e da vida dos países latino-americanos, esses
dados não resistem a qualquer comparação. A mim quase daria pena expô-los,
porque me dói a situação terrível de mendicância, crianças abandonadas,
desnutrição, desemprego, os níveis de saúde, as perspectivas de vida, a
mortalidade infantil. Na América Latina está em torno de 60, e em nosso país é
11,1. Não é nem a metade, é seis vezes menos praticamente. Se virmos os índices
de analfabetismo, de educação, de escolarização, se vemos a atenção que recebem
nossas crianças nas escolas especiais, se vemos as instituições aonde vão os
filhos das mães trabalhadoras. Considera-se que a mulher incorporada ao
trabalho ganhou mais dignidade. Cinqüenta e oito por cento da força técnica do
país são mulheres. E houve mudanças colossais. Eu digo que nós já resolvemos em
30 anos o que a América Latina não resolveu em 200 anos. Essa é a realidade.
Jorge Escosteguy: Presidente,
o senhor mencionou o seu país como uma fortaleza sitiada e falou há pouco da
Nicarágua. Cuba não se sente de certa forma isolada, solitária, diante da
derrota do sandinismo no Nicarágua e os acontecimentos do Leste Europeu?
Fidel
Castro: Bom, é uma fortaleza sitiada no sentido militar, pode-se dizer.
Em função do risco que representa a vizinhança de um país tão poderoso como os
Estados Unidos. Vocês não podem imaginar isso porque são um país grande,
enorme, oito milhões e meio de quilômetro, estão muito longe dos Estados
Unidos, para sorte de vocês. Porque o México está perto. Tem três mil
quilômetros de fronteira, o que lhe custou essa vizinhança? Primeiro foi mais
da metade de seu território, as terras mais ricas em minerais e petróleo, e o
que têm que sofre por isso. Nós estamos a 90 milhas. Temos até uma base ianque
que está lá pela força, porque tem vontade, porque não quer sair. Sem ter
qualquer direito de estar lá. E nos agridem e nos ameaçam com os meios de
guerra mais sofisticados. Quero dizer então que nós temos que defender a
independência e a soberania do país frente a este poder militar. Isso não
significa outro tipo de isolamento. Bom, nos bloqueiam economicamente e sua
capacidade de bloqueio é muito grande...
José Antônio
Severo: Essa base de Guantánamo será retirada dentro de poucos
anos, né?
Fidel
Castro: Mais tarde ou mais cedo terão que se retirar. Nós transformamos
esta questão num ponto prioritário. Em qualquer mudança nas relações de Estados
Unidos e Cuba, seja qual for a solução, têm que retirar a base de Guantánamo.
Eles só têm o direito de uma base militar pela força no território de outro
país. Bom, então... na economia, sofremos o bloqueio. Estávamos falando...
Jorge Escosteguy:
Dessa mudança da Nicarágua e o Leste...
Fidel Castro: Estados
Unidos não só impedem o comércio de outros países com Cuba, se podem tomar
alguma medidade represália... a toma. Se Cuba exporta níquel a algum país
europeu eles dizem: Se tem níquel cubano, não compro. O bloqueio tem muitos
tentáculos em muitos lugares. Mas também temos relações econômicas com muitos
países. Temos relações políticas com muitos países. E muitos países do Terceiro
Mundo. Cuba foi o presidente do Movimento de Países Não Alinhados. E Cuba acaba
de ser eleita para o Conselho de Segurança das Nações Unidas por 145 votos. É
uma das maiores votações já registradas. Nós mesmos nos assombramos. Porque
quando as votações são secretas, muita gente se vinga e vota a nosso favor.
Quando são públicas, como em Genebra, sabem que podem vir represálias
econômicas... Mas nas votações secretas na ONU ( Organização da Nações UNidas)
sempre temos um grande número de votos. Isso não reflete isolamento. E isso
ocorreu há uma semana. Temos um companheiro que durante o mês de fevereiro
presidiu o Conselho de Segurança. Fez um excelente trabalho, e tem experiência
neste campo. Na África, todos os governos de esquerda ou de direita têm uma
relação extraordinária com Cuba. Não esqueçam que nós temos lutado contra o
Apartheid, contra a África do Sul, que durante quinze anos ajudamos a defender
a soberania de Angola. Lutamos, combatemos, tivemos vitórias decisivas, que
tornaram possível a solução do problema. A independência da Namíbia e grandes
avanços se estão conseguindo, um processo que parece irreversível para a
solução dos problemas da África do Sul e fim do Apartheid. Então, as relações
que temos com países africanos, do Terceiro Mundo, não alinhados... Com a
América Latina, no ano de 1965 não ficou ninguém além do México. E hoje temos
relações respeitosas e crescentes com os diferentes governos da América Latina,
com a maioria. Independente da ideologia polí.
Jorge Escosteguy: Com a
derrota do sandinismo na Nicarágua e esses acontecimentos no Leste Europeu, o
senhor não se sente um pouco isolado politicamente?
Fidel Castro: As relações com a
URSS se mantêm perfeitamente bem, e a URSS realiza grandes esforços para manter
todas as relações comerciais que tem com Cuba e relações de amizade. Faz todo o
esforço. Problema haverá se surgirem dificuldades grandes na própria URSS. Se
surgir um conflito interno, se produz um processo desintegrador na União
Soviética, isso sim poderia afetar-nos. Mas já faz tempo, vários anos, a URSS
leva seu programa de reforma e de mudanças. Outra coisa são os países do Leste.
Eu creio que se exagera um pouco o tipo de colaboração. Porque certamente nós
vendemos nossos produtos, mas na verdade exportamos fundamentalmente alimentos,
açúcar. O que nós exportamos em açúcar a esses países vale hoje exatamente 400
milhões de dólares. Exportamos cítricos, níquel, matérias-primas estratégicas.
E vão crescendo neste sentido. Enquanto isso recebemos alimentos, entre 40 e 50
milhões. Para nós os alimentos são mais importantes. Se não vem a cevada checa,
compramos em outro lugar. Se não vem o frango que compramos da Bulgária, não
era muita quantidade, compramos em outro lugar. Porque não nos davam essas
coisas de presente. E compramos deles muitos equipamentos industriais de má
qualidade. Que só nós éramos capazes de fazer com isso o que fazíamos, porque
nos tornamos especialistas em trabalhar com carregadeiras búlgaras, ou o ônibus
Icaro. Realmente os que vocês produzem aqui no Brasil são muito melhores. Então
o que vale comprar três carregadeiras, se três meses depois todas estão
paradas. E tem que ir buscando peça aqui, componente ali, para fazê-lo andar,
modificando a peça. É melhor comprar dois, e que os dois andem.
Jorge Escosteguy: Há pouco
tempo o presidente brasileiro disse que o carro brasileiro era uma carroça. O
senhor acha que o carro com os equipamentos do Leste Europeu são equivalentes
às nossas carroças?
Fidel Castro: E que
sentido tem a palavra carroça?
Jorge Escosteguy: Má
qualidade.
Fidel
Castro: Nós não temos essa opinião dos equipamentos brasileiros...
Jorge Escosteguy: O que digo
é: os países do Leste Europeu compram de vocês? Porque os equipamentos são de
muita má qualidade...
Fidel Castro: Sim, como
regra são de tecnologia atrasada. Você compra artigos industriais e são de
tecnologia atrasada.
José Antonio
Severo: Isso é um defeito da organização?
Fidel
Castro: Posso dizer o que fazemos com a ciência para que não aconteçam
esses problemas. Em matéria de informática estamos mais avançados que esses
países. As vezes compramos um torno de um desses países e o automatizamos.
Fazemos os elementos de automatização, o cérebro cubano. Já estamos fabricando
até robôs. E no robô não é importante apenas a parte mecânica, mas a parte de
programação. Então eles descuidaram disso. E acho que foram esses mecanismos,
foi essa prática de utilizar os mecanismos capitalistas, em que as empresas
começaram a entrar em choque com os interesses da sociedade. Queriam saber como
ganhar mais. O conceito de renda, que prevaleceu sobre o conceito de qualidade.
Políticas erradas, desatenção às coisas científicas. Nós testemunhamos tudo
isso. Mas nós também compramos equipamentos de muitas partes do mundo. Tornos
automáticos, tornos programados e indústria de processo químico. Nós fazemos
uma central açucareira completa. Quase completa, nem todos os componentes. E as
centrais que fazemos são excelentes. Então, a questão da qualidade tem que ser
uma política. E os mecanismos de construção do socialismo não podem entrar em
conflito, não podem conspirar contra a qualidade. E muitos dos métodos
salariais conspiravam contra a qualidade. "Esta parede, eu te pago tanto
por esta parede. Quando terminares, te pago." E o homem saía a por tijolos
a toda a velocidade, sem se importar como, qual era a qualidade. Eu posso me
referir a montes de exemplos que para mim influíram nesse tipo de problema e
que é precisamente o que nós precisamos evitar. Nós fazemos equipamentos e aqui
no Brasil temos alguns equipamentos. O sistema ultramicroanalítico é um
equipamento que levamos anos aperfeiçoando e tem todas as condições para
funcionar. É um equipamento muito importante na luta, na investigação sobre
AIDS, sobre diferentes doenças, trabalha com reagente produzido por nós, de uma
qualidade excelente. Lembro que o primeiro que veio para o Brasil dei de
presente ao governador Quércia. E já há em vários lugares do Brasil esses
equipamentos. Se os produtos não têm ótima qualidade, nós não os exportamos,
pois isso desprestigia o país. Mas como tínhamos relação de comércio, vendíamos
alguma coisa, alguma coisa tínhamos que comprar. Assim, que danos podem fazer a
nós se eles do Leste passam para o outro campo, como disseram em Genebra,
para conseguir crédito no Banco Mundial, no Fundo Monetário, cláusulas de nação
mais favorecida, ficaram junto dos EUA frente à Cuba, Hungria e Bulgária,
Polônia e Tchecoslováquia. Eu não vou dizer que tudo é ruim, porque não seria
justo. Mas em geral são de má qualidade e de tecnologia atrasada, essa é uma
grande verdade.
[ ] No
próximo bloco, Fidel Castro diz que um país socialista se quiser, tem todo o
direito de se tornar capitalista. Veja logo após o intervalo.
Jorge
Escosteguy: Voltamos com o Roda Viva que hoje entrevista o Presidente de
Cuba, Fidel Castro.
Fidel Castro: Foi uma
idéia que se teve. Assim nós também podemos tomar muitas idéias daqui e levar
para lá. Nós nos comprometemos a comprar dos brasileiros tudo o que os
brasileiros comprarem de nós. O Brasil não gasta uma só divisa com Cuba. Uma só
divisa conversível. Todo o dinheiro que recebemos do Brasil, colocamos numa
conta à parte e vamos investir no Brasil. Mas se um dia não está
contrabalançado o comércio e nós vendemos produtos em outro lugar. Podemos
também comprar no Brasil, ainda que o Brasil não tenha comprado de nós
determinado produto. Eu dizia que também agora, com as dificuldades no Leste,
quem sabe quantas coisas... é preciso estudá-las porque temos que conhecer toda
a produção de vocês na área química. Se muitas coisas que compramos de vocês,
algumas quantidades de aço, pneus - porque é deficitária nossa produção de
pneus - produtos químicos variados, produtos sintéticos, enfim, poderia fazer
uma lista muito grande.
Alceu
Náder: Não parece uma contradição que empresários brasileiros invistam
em Cuba, querendo obter lucros com isso? Como explicar essa contradição?
Fidel
Castro: Bem, vou explicar o correto. Qualquer país gostaria de ser dono
de tudo. Os brasileiros, vocês também têm multinacionais aqui. Vocês
gostariam que estas empresas fossem de vocês. Mas não tinham capital para
fazê-las. Não seria razoável se nós nos puséssemos a desenvolver uma central
açucareira em Cuba, em sociedade mista. Não creio que seja razoável que façamos
muita coisa para o consumo interno. Mas sim se o fizermos para exportar. Se o
fazemos para o consumo interno é porque pode sair mais barato do que comprar
fora. Produzi-lo em sociedade, com uma empresa de outro país. Começamos com os
hotéis. Nós temos centenas de quilômetros de praias em lugares excelentes.
Estamos unindo os recifes que têm magníficas praias com a terra, usando pedras.
Há condições de construir 250 mil habitações. Seria um negócio de bilhões.
Agora, se você não tem o capital, se não tem o mercado, se não tem tecnologia,
porque o turismo também é tecnologia, acima de tudo. Não pode fazer nada. Mas
se aparece mercado, capital e tecnologia aí me convém. Cuba pode dizer em 50
anos fazemos isso com nossos próprios recursos. Mas nós não necessitamos tanto
dinheiro para daqui a 50 anos. Precisamos dentro de oito, de dez, doze. Então,
é de mútua conveniência, é uma coisa pragmática. Esse lugar que não se
exportaria, esse ar, esse mar, num mundo que está desesperado por causa da
contaminação, se exploraria assim. Mas não é só no turismo. Há países que têm a
tecnologia, o capital e mercado. Bom, vamos ser sócios dele. Agora teremos que
dar facilidades, senão não investem. Recuperam o capital em pouco tempo, mas
nós também o recuperamos em pouco tempo, porque o hotel não se faz só com o capital
dele, mas com o nosso também. Coloco a moeda conversível para determinados
materiais e elevador de um tipo determinado que deve ser muito seguro, ou
quadros elétricos de tal capacidade, ou outros artigos. E nós construímos,
colocamos a força de trabalho. Construímos o cimento, a areia, a pedra, a
máquina da construção, o mármore, temos um excelente mármore, e somos donos de
quase metade do hotel. Se você não dá essa oportunidade a essa campanha, não
investe. Você não pode se aferrar a uma idéia pura que não quer que haja nenhum
investimento estrangeiro. Mas agora eu estou buscando outra coisa,
investimentos nossos no exterior. Se tem uma espécie de compensação e de
garantia recíproca. Vocês têm lá, nós temos aqui. Mas às vezes, um exemplo, há
obstáculos de todo o tipo para o desenvolvimento do comércio. Pode-se encontrar
um obstáculo alfandegário. E tem uma tecnologia, mas não vai vencer esse
obstáculo. Não resta alternativa a não ser fazer um investimento fora para
vencer esse obstáculo alfandegário e poder exportar o produto. Assim, que a
vida é muito rica em possibilidades. E isso sem abandonar uma ponta de nossos
princípios. Veja é o Estado que, de uma ou outra forma, está fazendo isso e o
está fazendo para o povo. Mas o que esperamos? Que haja socialismo em toda a
América para fazer integrações? Ou que nós nos tornemos capitalistas? Creio que
não faz falta nenhuma das duas coisas para que possamos abrir a integração.
Essa é uma coisa das mais interessantes que constatei.
Alceu Náder: Em cima
desse exemplo que o senhor acabou de dizer, o senhor não acha que nós estamos
caminhando para a morte definitiva da ideologia e para uma nova era de
pragmatismo entre os países?
Fidel Castro: Não
penso que exista a morte da ideologia. Porque te digo que todas deixaram algo.
O cristianismo foi uma ideologia e deixou muitas coisas que ainda vigoram como
quando falou dos pobres e de toda uma série de coisas. Da Bíblia tirei muitas
idéias que posso dizer que são idéias, que do meu ponto de vista político, têm
vigência,digamos. A revolução francesa tem toda uma ideologia. E criou mil
formas. Avançou. Recuou. Pelos erros de Napoleão os disparates e as loucuras
que ocorreram à Napoleão que quis invadir o império dos czares e fazer uma
Europa napoleônica, e no fim a Revolução Francesa retrocedeu e vieram outra vez
os poderes absolutos. Mas sem dúvida as idéias das revoluções que avançaram e
retrocederam, hoje são as idéias que prevalecem. Há idéias que são
eternas. A da dignidade do homem, da liberdade do homem. E elas não existiram
sempre, foram surgindo. E cada uma delas irá deixando o melhor. Então nunca
faltará a ideologia. Nunca sobrará ... para nós, a ideologia. A solução dos
problemas de que falamos, a divisão eqüitativa da riqueza, para nós é um sonho
que o homem tenha, trabalhe segundo sua capacidade e receba segundo sua
necessidade. Isso é o comunismo, não é o socialismo. Estamos na etapa
socialista - que o homem trabalhe segundo sua capacidade e receba segundo seu
trabalho, porque temos a diferença salarial. Procuramos que, entre a menor e a
mais alta, não exista uma grande distância. Mas lógico, nossa fórmula
socialista implica que um médico eminente ganhe mais e outro menos. Mas também
pode haver um operário muito especializado que ganhe mais que um médico. Quem
sabe um dia se você quiser um coveiro, talvez tenha que pagar a ele mais que a
um médico.
Jorge Escosteguy: Presidente,
um pouco antes de gravarmos a entrevista, comentávamos o pacote econômico
brasileiro e falávamos principalmente desse confisco bancário das contas
correntes. O senhor fala que houve uma revolução na economia brasileira a
partir do dia 15, o senhor fez uma revolução em Cuba, houve confisco de conta
corrente em Cuba quando o senhor tomou o poder?
Fidel
Castro: Este é um tema que eu e você estávamos falando,
comentando e fazendo análise e eu transmitia algumas experiências. Para mim, eu
devo evitar fazer análises de medidas do governo, porque já estaria me metendo
em tema interno. Podem dizer que é falta de cortesia de minha parte, que faça
isso. Posso falar e pensar em termos gerais. Eu estou muito interessado em
todas as medidas que vocês tomarem, porque conheço os problemas que tem a
América Latina. O problema da inflação e tudo isso, a dívida e as enormes
dificuldades que tem qualquer governo hoje na América Latina. E sempre estou
muito curioso para ver que medidas elaboram, de que forma vão resolver seus
problemas, porque já tem um tempo que os governos latino-americanos tentam
encontrar a solução para os seus problemas. E sabemos todos que é uma coisa
muito difícil. Por isso é melhor observar o que vai ocorrer e com muito
interesse, sobretudo porque vamos enriquecer nossos conhecimentos, nossa
experiência sobre esses temas. E a mim como político, como dirigente, me ajuda
a aprofundar na magnitude dos problemas e nas possibilidades ou não que
determinadas fórmulas os resolvam. Falando disso, vocês me perguntaram como nós
fizemos na Revolução. Nós tomamos medidas, naquele momento não estávamos
abordando um problema de inflação, mas sim o fato de que Batista [ Fulgêncio
Batista, ditador militar de Cuba entre 1952-1959] e muita gente tinha levado
muito dinheiro. Havia muito dinheiro na mão de toda aquela gente e estavam
começando a usar para combater a Revolução. Fizemos uma troca de moeda, mas na
troca de moeda dissemos: "Depositem. Todos que tenham dinheiro em sua
casa, depositem". E a todos que tinham dinheiro devolvemos uma parte. Não
tudo. Quem tinha mil dólares, devolvemos os mil. Até uma quantidade determinada
devolvemos tudo. Daí para cima confiscamos o dinheiro. Prestem atenção, esse
era o dinheiro que não estava nos bancos. O dinheiro que havia nos bancos não
tocamos nele. Havia gente que tinha até meio milhão de pesos e o peso
equivalente ao dólar. Havia gente que tinha dinheiro nos bancos e nós não
tocamos, nunca tocamos no dinheiro. No dinheiro que estava depositado nos
bancos, porque sempre demos importância prioritária que as pessoas tenham
segurança. E elas guardam seu dinheiro. Esse foi o caso. Mas não estávamos
buscando o objetivo de resolver a inflação. Estávamos buscando o objetivo de
privar do dinheiro a todos aqueles que haviam roubado, haviam acumulado
dinheiro e o tinham escondido, enterrado ou tinham no estrangeiro e iam usá-lo
contra a Revolução. São dois objetivos diferentes. Realmente não sei como
faríamos. Nós evitamos medidas, por razão política evitamos medidas. Claro que
nós nos defendemos por outras vias, porque temos um número de produtos
racionados, estabelecidos ou tabelados. Porque ninguém nos financia. Porque se
nós emitíssemos e o preço fosse livre, não teríamos regulamentação, mas tivemos
que fazer diante da situação do nosso país. Qualquer aumento de dinheiro em
circulação afetaria gravemente os setores de renda mais baixa. Por isso, esse
mínimo que se necessita nós garantimos a preço econômico e até mesmo
subsidiado, muitos deles. E também temos o mercado paralelo. Para os que ganham
mais e querem comprar um produto muito mais caro. Esta é uma fonte de
arrecadação importante. No nosso sistema nós podemos subsidiar certo produto e
cobrar outro mais caro. Por exemplo: nós subsidiamos o leite, mas cobramos cara
a cerveja, o rum, os cigarros, todas essas coisas que não são essenciais e ao
mesmo tempo ajudam de certa forma os programas de saúde. Nós sabemos também,
quando queremos arrecadar dinheiro... neste momento estamos emitindo. Não nos
acontece o desastre do aumento dos preços das coisas com que as pessoas se
alimentam todos os dias. Os preços se mantêm. Como temos um programa de saúde,
nós decidimos emitir 400 milhões. Mas nós sabemos como vamos recolher estes 400
milhões. O que temos que importar em matéria-prima e a que produtos dedicar
para que, com um gasto relativamente pequeno em divisas, possamos arrecadar
grandes quantidades de dinheiro interno. São mecanismos que nós utilizamos para
nos defender, porque os excedentes de dinheiro podem criar problemas. Se não
afeta o preço dos alimentos que você está comprando, pode afetar o interesse no
trabalho. Se há um casal, um pode dizer que com o trabalho dele pode resolver,
pode desestimular o trabalho, e por isso nós evitamos muitos esses fenômenos
que não poderíamos chamar de inflacionários, mas de excedentes de dinheiro em
circulação, além da quantidade total de bens e serviços em oferta. Nestas
condições, nós pudemos, e não sabem como nós nos alegramos todos os dias, nos
livrar do flagelo da inflação. E assim financiamos o nosso desenvolvimento.
Porque nós não temos Banco Mundial, nem Banco Interamericano, nem Fundo que nos
fizesse empréstimo. Temos que tirar de nossos próprios recursos e de nossa
própria imaginação .
José Antônio
Severo: Presidente, o que se comenta no mundo hoje, é que o senhor
estaria aprofundando pouco a pouco divergências com o presidente Gorbatchov
[Mikhail Sergueievitch Gorbatchov (1933- ), presidente da URSS entre 1985-1991]
da União Soviética, pela condução da política, evidentemente pela política
interna dele no seu país. O senhor apoiou a intervenção na Thecoslováquia, por
exemplo, em 68. O senhor acha que se deveria novamente voltar a esse tipo
política para impedir casos como o da Lituânia que declara uma independência
unilateral, separação da União Soviética? E isso está realmente conturbando as
suas relações pessoais com o presidente soviético?
Fidel Castro: Minhas
relações com Gorbatchov sempre foram muito boas. Sempre houve um bom nível de
comunicação. Falei mais de uma vez com ele na URSS. Ele visitou Cuba. Foi uma
visita de muito êxito. E as relações entre os dois países seguem bem, ainda que
eles façam as coisas de uma forma e nós fazemos de outra. Há uma certa
tendência internacional de mostrar divergências ou inimizade, falta de amizade
entre Gorbatchov e Cuba. Entre Gorbatchov e eu. É uma coisa curiosa que antes
nos acusavam de ser satélites dos soviéticos e nós nunca fomos satélites dos
soviéticos, porque fazíamos coisas que faziam os soviéticos. E nos criticavam.
Agora nos criticam porque não fazemos as mesmas coisas que fazem os soviéticos.
E eu pergunto: que dia teremos direito de fazer o que nos dê vontade? E atuar
livre e soberanamente. Nós o que fazemos sempre é seguir princípios. Formávamos
parte de um mundo socialista muito estreito nos períodos de maior isolamento.
Não o de agora. Períodos em que quase as únicas relações que tínhamos era com
os países socialistas, de cuja colaboração econômica naquele momento e também a
colaboração militar dependia nossa segurança. Isso não quer dizer que nós
estivéssemos sempre de acordo com todas as coisas que faziam os soviéticos. Eu
pessoalmente tinha muitas críticas sobre épocas passadas. O pacto "Molotov
Ribbentrop" sempre questionei e era ainda quase uma criança. Me pareceu
que tirou muita simpatia da URSS. Eles sempre alegavam que o Ocidente queria
jogar-lhes Hitler [Adolf Hitler - 1889-1945 - ditador da Alemanha entre
1933-1945] por cima, e eles tinham que ganhar tempo, pagar um custo político
alto. Eu sempre fui crítico ao fato de que um país se deixe agarrar
desprevenido. Porque com a experiência de nos defender dos Estados Unidos,
estamos sempre em guarda, sempre estamos observando movimento que fazem as
esquadras e as tropas dos Estados Unidos. É impossível que se possa acumular 3
milhões de homens e milhares de tanques sem que se dêem conta que vão ser
invadidos. Sempre critiquei o fato de durante a guerra não terem retirado os
aviões, a profundidade da retaguarda. Deixavam ali na primeira linha e foram
liquidados quase que no primeiro momento com um ataque surpresa. Stalin adotou
uma atitude de avestruz. Meteu a cabeça no buraco. Ele tem responsabilidade por
ter deixado o país ser atacado, sem estar mobilizado. Se estivessem
mobilizados, a história teria sido outra. Não teriam chegado perto de Moscou.
Tenho muitas idéias e tenho conversado com eles sobre isso. Claro que não vou
sair dizendo publicamente. Não é o meu papel. Não sou um professor de uma
academia de história, nem de ciências políticas para estar dizendo o que me dê
na veneta, na cátedra. Os governadores têm que atuar com um sentido de
responsabilidade e não de maneira irresponsável, em guerra contra todo o mundo
e brigando com todo o mundo. Eles fizeram, cometeram erros, não há dúvida que
um dos desastres da política soviética foi a questão da Tchecoslováquia. Agora,
nós não podemos nos colocar do lado dos Estados Unidos. Porque no momento em
que todo o mundo... Nós atuamos com um sentido de solidariedade, e não foi a
única vez, porque depois veio o "presente" do Afeganistão. E outra
vez nos presentearam com a ausência da Olimpíada. Então, quando acontece a
Tchecoslováquia, não podíamos nos colocar no lado contrário. Podíamos ter
ficado em silêncio. Ou podíamos fazer uma análise crítica. Se é preciso salvar
o campo socialista, estamos de acordo. Rompe-se o equilíbrio militar e pode por
em perigo toda a comunidade, é um remédio amargo, mas bom. Podemos aceitar. Mas
fiz uma análise crítica que podia estar relacionada com as coisas que me
perguntaram aqui. Podem buscar. Nós imprimimos. Porque ninguém fez, nunca mais,
críticas sobre nós, sobre a maneira de se conduzir... e a pergunta: por que
isso acontece? Por que um país tem que ser salvo do exterior? Com os tanques do
exterior. E nós meditávamos sobre isso. Porque estamos longe da URSS. Porque se
um dia, por erros da revolução cubana, tivéssemos uma contra-revolução, os
tanques que ali desembarcariam seriam os dos ianques. E tudo isso nos obrigou a
trabalhar com esmero e a manter as relações mais estreitas entre a Revolução e
o povo, entre o partido e o povo. Os outros estavam tranqüilos, sob o
guarda-chuva nuclear da URSS. Parece que a política interna não preocupou. E
todos esses mecanismos de que falo deixam as pessoas distantes. Passamos por
essas experiências. As pessoas chegam a um ponto em que não importa mais nem
pátria nem nada, importa apenas o dinheiro, o salário. Se enfraquecem a
ideologia e os grandes objetivos históricos que se persegue. Eu fiz uma crítica
fortíssima e por que, e por que, e por que? Se naquela ocasião ocorresse algo
como a Afeganistão, nós não nos oporíamos a que se ajudasse o Afeganistão, e a
URSS o ajudava. Nós íamos a outros países. O que não fizemos foi ir a algum
país da fronteira e com um governo na maleta para ajudar esse país. Ajudamos os
angolanos durante 15 anos. Mas sempre tivemos respeito absoluto pelo governo do
país e pelos problemas internos do país. Eles eram os donos, os governantes do
país. E nós éramos apenas os aliados que os ajudavam contra a África do Sul.
Ajudamos a Etiópia contra a invasão estrangeira. E todos os povos viram isso
como uma ajuda, porque fomos por nossa conta. Fomos porque nos pediram os governos
desses países. Bom, é uma generosidade inédita, se pode dizer. Nós com toda a
luta com os Estados Unidos, na luta contra o isolamento, sentíamos a
necessidade de desenvolver nossas relações com o Terceiro Mundo. Mas nunca
houve o menor problema, e aí estão os governos que nós ajudamos. Ninguém os
trocou, ninguém mudou esses governos. E eu, não é porque me opunha ao
Afeganistão, mas a forma como fizeram, entrando pela fronteira com as tropas e
com um governo. Esta é uma forma de ajudar? Isso também nos criou uma situação
difícil. Quando decidem por uma questão com os ianques ausentar-se das
Olimpíadas de Los Angeles e nós também. Nós, cujo único contato com os Estados
Unidos era através do esporte. Não é que não gostamos da idéia, mas por questão
de solidariedade decidimos não ir. Quando as Olimpíadas eram na Coréia, aí
perguntamos: E vão à Coréia? Por acaso lá há mais segurança que em Los Angeles?
E vão esquecer da República Democrática da Coréia [do Norte]? Bom, não vamos
ajudar. Nós fizemos a proposta que se dividissem os Jogos... Agora, todos eles
foram de cabeça para lá, para a Coréia do Sul, nós não fomos às Olimpíadas,
porque era uma questão de princípio. No momento nos sacrificávamos por
solidariedade. Quando víamos que havia uma de solidariedade com outros países,
nós não compartilhávamos isso. E não fomos à Olimpíada, porque é a linha que
seguimos. Mas sem dúvida, foi um dos episódios tristes dessa história. Nós
também sacrificamos simpatia e apoio, porque decidimos. Aos Estados Unidos, não
vamos de maneira alguma, é o nosso adversário, é adversário do mundo, nós não
somos nenhuma grande potência. O que nós podemos fazer é uma análise crítica,
séria, dos fatores que podem ter determinado isso. Bom, é claro, estavam em
crise sem dúvida esses socialismos. Porque um socialismo que tem que ser salvo
desde o exterior... O que penso, bem no fundo, é que socialismo que não seja
capaz de defender-se, não merece continuar sendo socialismo. Este é um ponto
muito importante. Quando Gorbatchov foi à Cuba e falamos ante a Assembléia
Nacional, eu coloquei publicamente meu critério de que se um país socialista -
e foi antes de todos esses problemas - queria construir o capitalismo, se
deveria respeitar esse direito. Que o país socialista construísse o
capitalismo. Da mesma forma que entendíamos e reclamávamos e exigíamos que se
um país capitalista queria construir o socialismo, é preciso respeitar e não
ficar agredindo... Coloquei isso de maneira bem clara ante a Assembléia
Nacional. E falei com Gorbatchov depois meus critérios sobre este assunto.
Assim é possível que tenhamos colocado um pequeno grão de areia em favor do
respeito desse processo, ainda que no fundo da minha alma eu não posso estar me
sentindo feliz. Foi realmente muito respeitoso.
Jorge Escosteguy: E o
Gorbatchov, o que disse para o senhor?
Fidel
Castro: Em relação a quê?
Jorge
Escosteguy: Que se quisesse construir o capitalismo um país socialista....
Fidel
Castro: E eu creio que, minha impressão, a atitude dele foi
mais de dizer: "Tomara que isso não aconteça". Mas de sua filosofia e
de suas posições, de suas reações, sua maneira de pensar, eu tinha a confiança
e tinha a segurança de que se ocorresse esse fenômeno, a União Soviética ia
respeitá-lo. Porque eu falei primeiro que ele. Eu não tinha um discurso
escrito. Ele tinha o discurso escrito. Depois, numa ceia, falamos de tudo isso.
Tudo estava gravado, mas por desgraça, nesse último jantar, já mais
descansados, nada se gravou, porque houve mudança de tradutor...
Jorge Escosteguy: Era um
aparato da Bulgária, não é?
Fidel Castro: Não,
creio que era japonês. [muitos risos]
...Foram
muitos temas, mas principalmente este e num momento ele disse: "é melhor
não pensar". Não foi uma coisa que ele dissesse, nem eu podia perguntar-lhe
isso, nem eu podia dizer, ouça, senhor... Perguntei-lhe sobre o que eu havia
dito. E ele me disse que era muito interessante. Que tinha escutado com muito
interesse e que era muito interessante. Mas nesse momento não deu nenhuma
definição. Mas no contexto geral da conversação, ficou evidente para ele que
algumas coisas não poderiam voltar a acontecer. O que eu penso e aceito, estou
de pleno acordo, que se tenha respeitado o direito desses países, de fazer as
mudanças que julgaram necessárias, independentemente de nos agradar ou não, as
mudanças que faça.
Clóvis Rossi: O senhor
tenta separar a União Soviética, dos países do Leste Europeu que estão saindo
do regime socialista. Mas é evidente que a União Soviética também está adotando
mecanismos capitalistas. Ou já vinha adotando mais, ainda agora. Isso se aplica
também a países da África que haviam adotado o regime socialista. O senhor não
se sente em algum momento como aquela pessoa que vê uma tropa marchando numa
direção, o senhor está marchando numa outra direção e eles é que estão
marchando errado?
Fidel
Castro: Claro, as tropas que marcham numa mesma direção se dirigem ao
inimigo, são as tropas que estão marchando corretamente. Não há duas situações
iguais. A URSS está fazendo reformas, introduz elementos... Nós estamos
fazendo. A URSS está fazendo, fala-se em arrecadar terras. Nós não falamos
disso. Nós fizemos outro tipo de reforma agrária. Não obrigamos ninguém a se
unir pela força. Ainda há em Cuba 70 mil camponeses independentes. Ninguém pode
nos falar de camponeses independentes, uns privilegiados porque damos tudo e
perdoamos as dívidas quando há seca ou calamidades. Este é o camponês de Cuba.
E vemos as cooperativas que se fizeram de forma voluntária, as empresas
estatais modernas, bem mecanizadas. Fizemos tudo diferente. Para nós, pegar
nossas plantações de cana e dividi-las em pedaços é a ruína. Deixaríamos de ser
produtor de açúcar, deixaríamos inclusive de ter a oportunidade de fazer acordo
com vocês para elaborar políticas externa em relação ao desenvolvimento da
produção açucareira, como dois grandes produtores. Nós não poderíamos fazer
isso. Não teríamos nem a quem dar essas terras. Elas funcionam porque semeiam
com avião e trabalham com máquinas, com colheitadeiras e são lugares distantes.
E você não encontra em Cuba alguém para dar um pedaço. Que vá lá a um pedacinho
isolado arrendar uma terra. Na realidade, na prática, não se poderia fazê-lo. A
URSS não declarou que se propõe a construir uma economia capitalista, mas disse
que mantém o socialismo, que mantém princípios essenciais. Os outros disseram
que vão à economia de mercado e à privatização das propriedades estatais, isso
de maneira aberta. A URSS não fez isso. A URSS atua com mais prudência nisso
tudo. E com mais cuidado. Está ensaiando... Mas ainda assim, vamos supor que a
URSS queira fazer algumas mudanças. Não é assunto nosso. Tudo depende como vão
ser as relações futuras. Não é necessário ser um país socialista, quimicamente
puro, para poder negociar com ele. China também fez uma série de reformas e nós
mantemos excelentes relações econômicas com a China e crescem essas relações
econômicas com ela. A URSS pode fazer as reformas econômicas que queira e se
mantém as relações econômicas. Necessitam de nosso açúcar, nosso níquel, nosso
cobalto, nossos cítricos. Até mesmo está crescendo em produtos biotecnológicos,
indústria farmacêutica, equipamentos médicos. Este ano vamos mandar à URSS o
equivalente a 300 milhões de rublos. Assim é a situação. Não é igual a situação
de um e de outro. Eu acho que o melhor é que cada um ande onde ache melhor
andar. E se respeitem os direitos dos outros, entre eles o nosso, de andar para
onde cremos que devemos andar.
Jorge
Escosteguy: Presidente, o nosso tempo está quase esgotado. Os seus
assessores avisam que o senhor tem outro compromisso. Eu lhe faria uma última
pergunta: uma das críticas que se têm feito muito ao regime cubano, é a
ausência de liberdade de imprensa. No recente seminário do Memorial da América
Latina, o representante da imprensa latina disse que está havendo uma certa
mudança na imprensa cubana. A imprensa cubana caminha para ser mais moderna,
mais aberta? Para dar mais liberdade de expressão?
Fidel Castro: Bom,
nossa imprensa tem um status diferente da imprensa dos outros países latino-americanos,
que são cadeias de instituições privadas. Em Cuba temos a imprensa distribuída.
As organizações de massa têm seu jornal, a juventude tem o seu jornal, os
camponeses têm o seu jornal, os operários têm seus órgãos de imprensa. Os
militares têm seu órgão de imprensa, o Partido tem seu órgão de imprensa, as
mulheres têm seu órgão de imprensa. Estão distribuídas por essas organizações
de massa. Elas são os responsáveis pelo que se diz. O Partido é responsável
pelo dele. E cada província tem seus órgãos de imprensa, o que nós estamos
fazendo é incrementar a crítica, as análises. Estamos tratando de ampliar ao
máximo a liberdade de expressão dentro das condições e do status que tem a
nossa imprensa. Eu não devo negar que os que estão contra a Revolução, os que
estão em sintonia com os EUA, que é uma batalha velha, de muito tempo, mas que
ainda não terminou. Ao contrário, o futuro nos aguarda com períodos mais duros
do que jamais tivemos. E a tarefa muito séria. Os contra-revolucionários não
têm imprensa. Para eles não existe imprensa em Cuba. E a imprensa do Partido
não vai fazer eco. Creio que nem em Cuba, nem em qualquer lugar da campanha dos
contra-revolucionários. Nem a outra imprensa. Esta é a situação, pois eu não
vou estar aqui inventando coisas. Serão sempre assim? Não tem que ser
necessariamente sempre assim e nada será nunca sempre de uma forma. Mas essas
são as situações que nós temos agora. E que agora não podemos mudar. É o que
lhe posso responder com toda a franqueza.
Jorge Escosteguy: Muito bem. Nós
agradecemos então, a entrevista com o presidente cubano, Fidel Castro. Se o
senhor quiser fazer alguma última observação para se despedir dos nossos
telespectadores...
Fidel
Castro: Realmente tenho me sentido muito bem. Senti todo o calor da
hospitalidade, da amizade e da familiaridade dos brasileiros, em especial aqui
em São Paulo onde fui muito bem tratado. Ontem, no brinde final da ceia com o
governador e Daniel [José Daniel Ortega Saavedra (1945- ), presidente da
Nicarágua entre 1985-1991. Regresoou ao cargo em 2006] disse: "Bom, logo
vou embora". Eu quando terminei, me ocorreu dizer é que eu não vou embora,
eu fico. Queria expressar com grande sinceridade que meu corpo, meu peso, minha
bagagem, tudo vai embora, mas meu coração, ou uma grande parte de meu coração
ficaria aqui em São Paulo.
Jorge
Escosteguy: Muito obrigado então ao presidente de Cuba, Fidel Castro.
Agradecemos também aos nossos jornalistas convidados. E o programa Roda Viva
volta na próxima segunda-feira.