“Ficou no mundo muita coisa que deve ser destruída a ferro e fogo”
V. Lênin
Lênin. |
A esquerda contemporânea rendeu-se de
forma quase unânime aos subterfúgios traiçoeiros do revisionismo: abandonou a
via revolucionária e restringiu a ação do movimento dos trabalhadores à
limitada esfera reformista, com a justificativa de preservar os avanços alçados
pelo Estado democrático. A bandeira da democracia é empunhada com afinco nos
discursos desta esquerda a qual se autoproclama a guardiã dos ideais de
igualdade e justiça e dos direitos das “minorias” e que, em última análise,
adota posicionamentos impossíveis de serem distinguidos dos adotados pela
direita conservadora.
Essa postura política – assumam ou não
os partidos que nela se fundamentam – é de inegável tradição social-democrata e
desde Kautsky e Bernstein vem se configurando no cavalo de Troia da
esquerda. A defesa da democracia pura para justificar a negação da luta
revolucionária apresenta uma ilusória aparência progressista e exerce
muito bem sua função de encobrir a essência flagrantemente reacionária do
revisionismo da esquerda.
Lênin, em sua obra “A revolução
proletária e o renegado Kautsky” escrita em 1918, já havia apontado o movimento
socialista reformista do início do século XX como um movimento servilista e
traidor da classe operária por defender que a ascensão do socialismo se fizesse
democraticamente, de forma gradual e pacífica, negando, portanto, a
imprescindível via revolucionária que levaria à instituição da democracia proletária.
A crítica do revolucionário russo
mantém sua atualidade e é de extrema relevância para a compreensão do cenário
político atual. A social-democracia esvaziou as fileiras da esquerda
revolucionária, esvaziando também a possibilidade de um efetivo rompimento com
a ordem social vigente. Seguindo os passos de Kautsky (ainda que com muito
menos erudição e estilo), os atuais movimentos de esquerda se apoiam na
afirmação do caráter progressista da democracia e na defesa de que os
trabalhadores devam obrigatoriamente preservá-la e utilizá-la como instrumento
para alçarem sua ascensão e superarem as injustiças sociais. Porém, esta
pseudo-esquerda se “esquece” de um dado elemento o qual qualquer movimento que
se auto-intitule marxista jamais poderia perder de vista: a luta de classes.
Este elemento nos faz atentar para o
fato de que a tão defendida democracia não é um fenômeno que paira no ar. Ela é
uma forma de organização do Estado objetivada nas condições concretas da
organização social. Tendo isso em vista, não é difícil concluir que o conceito
de democracia pura existe apenas nas elucubrações fantasiosas dos obtusos
social-democratas, os quais, a exemplo dos idealistas alemães do século XVIII e
XIX criticados por Marx, fazem alusão a uma revolução restrita ao mundo das
idéias.
Não se pode falar em democracia pura,
em “defesa das minorias”, enquanto estivermos inseridos em uma sociedade de
classes. Nas palavras de Lênin: “enquanto existirem classes diferentes, pode-se
falar apenas de democracia de classe”. Historicamente, podemos afirmar apenas a
existência da democracia burguesa a qual foi introduzida para substituir as
relações sociais de produção feudais e a qual perdura até hoje. A defesa da
“democracia pura” é uma frase demagógica a qual mascara a verdadeira e
vergonhosa intenção da “esquerda” atual que, em última instância, é a de
defender os interesses da classe burguesa dando a eles o nome de Estado
Democrático. Muda-se a fraseologia, mas como já colocou Marx: “não é lutando
contra a fraseologia de um mundo que se luta contra o mundo que realmente
existe”.
Para sustentar seus argumentos
demagógicos a esquerda contemporânea busca apoio teórico a partir de uma
leitura enviesada e distorcida de Marx. Espelhando-se na estratégia do renegado
Kautsky, aproveita do marxismo aquilo que interessa à classe burguesa e rejeita
aquilo que a compromete como classe dominante. Ou seja, aproveita a afirmação
do papel histórico progressista do capitalismo em geral e da democracia
capitalista em particular em comparação com as relações sociais feudais, ao
passo que rejeita a luta revolucionária do proletariado contra a burguesia –
essência da doutrina marxista.
Lênin aponta com maestria o erro
crasso desta abordagem enviesada do marxismo: “A democracia burguesa, sendo um grande
progresso histórico em comparação com a Idade Média, continua a ser sempre – e
não pode deixar de continuar a ser sob o capitalismo – estreita, amputada,
falsa, hipócrita, paraíso para os ricos, uma armadilha e um engano para os
explorados, para os pobres”. Sendo assim, não podemos conceber a possibilidade
de qualquer ascensão do proletariado por meio da democracia burguesa, mas
apenas a partir de uma ruptura abrupta e definitiva com a forma de organização
burguesa de Estado. Esta é a base da teoria marxista, a qual a pseudo-esquerda
escolheu ignorar. Pelo seu posicionamento objetivo, que torna irrelevante suas
justificativas subjetivas, é que podemos afirmar com toda a convicção que a
esquerda contemporânea teve o seu papel reduzido ao de uma marionete do
neoliberalismo.
De forma intencional e deliberada,
estes renegados deram as costas à concepção marxista de Estado, definida por
Marx como “a forma através da qual os indivíduos de uma classe dominante fazem
valer os seus interesses comuns” e por Engels como “não mais do que uma máquina
para a opressão de uma classe por outra e de modo nenhum menos na república
democrática do que na monarquia”.
As leis que fundamentam a organização
estatal contemporânea, a igualdade jurídica que confere o aspecto “igualitário”
ao sistema social moderno e a apropriação excludente dos meios de produção pela
classe burguesa escancaram a hipocrisia inerente à democracia burguesa tão
prezada pela esquerda reformista. Todas as formas de Estado burguês defendem
constitucionalmente o direito da classe dominante de estancar com violência e
autoritarismo qualquer forma de divergência ou perturbação da ordem vigente
advinda da classe trabalhadora, ou seja, qualquer forma de superação pela
classe explorada da sua situação de escrava e de tentativas de não se comportar
como escrava. A lei e o direito, apontados como conquistas pela esquerda
renegada, não repousam, de forma alguma, sobre a vontade livre, mas estão
acorrentados a apenas uma vontade: à da classe dominante.
A crise econômica mundial que
vivenciamos atualmente reflete exatamente a submissão do Estado burguês aos
banqueiros, à reprodução do capital e revela, portanto, um total descompromisso
com a classe trabalhadora. Ao contrário do que a esquerda demagógica afirma,
nos momentos de crise observamos a despudorada subserviência estatal à classe
dominante: privatiza-se os lucros e estatiza-se os prejuízos às custas de um
período de intensificação da opressão das massas.
Fechar os olhos a esta realidade e
levantar entusiasmadamente a bandeira da democracia em defesa dos ideais
burgueses de igualdade e justiça é o maior desserviço que a esquerda poderia
prestar ao movimento de libertação da classe trabalhadora. É precisamente neste
momento histórico que a esquerda revolucionária deveria utilizar de todas as
suas forças para desmascarar o caráter pernicioso da democracia burguesa e
denunciar as latentes contradições existentes entre a igualdade jurídica
proclamada pelos capitalistas e a realidade econômica que tem a desigualdade e
a exploração em suas bases.
Sua obrigação histórica era a de
anunciar o fato de que esta igualdade formal anunciada com tanto entusiasmo
como um dos grandes avanços da democracia burguesa garante apenas a liberdade
para as grandes corporações explorarem ilimitadamente a força de trabalho,
garantindo possibilidades ao acúmulo livre do capital nunca antes alcançadas;
porém, do ponto de vista da classe trabalhadora, essa igualdade formal é fruto
da cisão entre trabalhador e meios de produção e responsável, portanto, pela
desigualdade social profunda, pela transformação dos trabalhadores em escravos
assalariados.
Entretanto, as vozes dos socialistas
revolucionários se calaram. O que se ouve é apenas o canto da sereia da
pseudo-esquerda celebrando os louros e as “conquistas” da democracia burguesa,
tentando extirpar pela raiz qualquer possibilidade da classe trabalhadora
exercer seu papel de dirigente do processo revolucionário.
Essas constatações tornam inegável o
fato de que a direita conservadora e a esquerda reformista se configuram em
braços do mesmo corpo, estando submetidas ao mesmo centro de comando que é o
neoliberalismo. O antagonismo ideológico que deveria impor um abismo entre
essas duas vertentes políticas se reduziu a uma mera diferença retórica: enquanto
a primeira deixa clara sua intenção de produzir e reproduzir as relações
capitalistas de exploração, a segunda, com um discurso “progressista” de
guardiã dos ideais democráticos, dissimula sua verdadeira função de entorpecer
a classe trabalhadora garantindo o livre e pleno desenvolvimento das nefastas
relações de produção capitalistas sintetizadas nas bandeiras do neoliberalismo.
Essa é a situação da classe
trabalhadora no cenário político neoliberal. Guiada pelos passos cegos de uma
esquerda oportunista que se “esqueceu” da luta de classes, que desapareceu com
o processo revolucionário inerente à libertação das massas, que defende a
hipócrita igualdade formal capitalista como igualdade de fato. Em suma, que
afirma sua tradição renegada ao engajar-se na militância diária de transformar
o marxismo em uma ideologia gradualista e neoliberal burguesa, difundindo uma
visão monocular dos processos históricos para convencer os trabalhadores da
universalidade dos valores burgueses. A conclusão não poderia ser diferente: a
pseudo-esquerda se configura em um entrave para o livre desenvolvimento da
história e, como tal, deve ser submetida a um combate sem tréguas.
Nossa proposta é exatamente esta. A de
não deixar pedra sobre pedra desta nefasta face do neoliberalismo que sob pele
de cordeiro mantém as massas no imobilismo. Não nos contentaremos com as
pequenas e insignificantes reformas, com as migalhas concedidas à classe
trabalhadora pela burguesia e tampouco as consideraremos avanços históricos a
serem preservados como um ensaio para o processo revolucionário que baterá em
nossa porta em um futuro incerto. A revolução socialista só acontecerá se nos
mobilizarmos intencionalmente para tanto ao invés de nos limitarmos a amenizar
as contradições qualificando como Estado democrático progressista aquilo que
sempre foi e que sempre será a ditadura burguesa com suas diferentes roupagens.
A classe dominante está disposta a
reformar tudo, menos aquilo que é essencial para romper com o modo de produção
vigente. Deste processo manipulativo e desavergonhado ainda sai como meritosa
por suas concessões “benevolentes”, “progressistas”, concessões estas que são
para a classe trabalhadora não mais do que vitórias de Pirro. Não aturaremos
mais isso. O tempo das reformas acabou, tendo perdurado por um período longo
demais. É tempo da classe trabalhadora despertar do sono profundo induzido pelo
revisionismo. É tempo de revolucionar.
- Larissa Bulhões D’Incao