sexta-feira, 18 de abril de 2014

O servilismo da esquerda renegada

Texto publicado no site do ‘Núcleo Marxista-Leninista USP’ sobre o revisionismo das organizações ditas da “esquerda” política contemporânea, mas que na prática são organizações capituladas às classes dominantes.

“Ficou no mundo muita coisa que deve ser destruída a ferro e fogo”

V. Lênin

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Lênin.
A esquerda contemporânea rendeu-se de forma quase unânime aos subterfúgios traiçoeiros do revisionismo: abandonou a via revolucionária e restringiu a ação do movimento dos trabalhadores à limitada esfera reformista, com a justificativa de preservar os avanços alçados pelo Estado democrático. A bandeira da democracia é empunhada com afinco nos discursos desta esquerda a qual se autoproclama a guardiã dos ideais de igualdade e justiça e dos direitos das “minorias” e que, em última análise, adota posicionamentos impossíveis de serem distinguidos dos adotados pela direita conservadora.

Essa postura política – assumam ou não os partidos que nela se fundamentam – é de inegável tradição social-democrata e desde Kautsky e Bernstein vem se configurando no cavalo de Troia da esquerda. A defesa da democracia pura para justificar a negação da luta revolucionária apresenta uma ilusória aparência progressista e exerce muito bem sua função de encobrir a essência flagrantemente reacionária do revisionismo da esquerda.

Lênin, em sua obra “A revolução proletária e o renegado Kautsky” escrita em 1918, já havia apontado o movimento socialista reformista do início do século XX como um movimento servilista e traidor da classe operária por defender que a ascensão do socialismo se fizesse democraticamente, de forma gradual e pacífica, negando, portanto, a imprescindível via revolucionária que levaria à instituição da democracia proletária.

A crítica do revolucionário russo mantém sua atualidade e é de extrema relevância para a compreensão do cenário político atual. A social-democracia esvaziou as fileiras da esquerda revolucionária, esvaziando também a possibilidade de um efetivo rompimento com a ordem social vigente. Seguindo os passos de Kautsky (ainda que com muito menos erudição e estilo), os atuais movimentos de esquerda se apoiam na afirmação do caráter progressista da democracia e na defesa de que os trabalhadores devam obrigatoriamente preservá-la e utilizá-la como instrumento para alçarem sua ascensão e superarem as injustiças sociais. Porém, esta pseudo-esquerda se “esquece” de um dado elemento o qual qualquer movimento que se auto-intitule marxista jamais poderia perder de vista: a luta de classes.

Este elemento nos faz atentar para o fato de que a tão defendida democracia não é um fenômeno que paira no ar. Ela é uma forma de organização do Estado objetivada nas condições concretas da organização social. Tendo isso em vista, não é difícil concluir que o conceito de democracia pura existe apenas nas elucubrações fantasiosas dos obtusos social-democratas, os quais, a exemplo dos idealistas alemães do século XVIII e XIX criticados por Marx, fazem alusão a uma revolução restrita ao mundo das idéias.

Não se pode falar em democracia pura, em “defesa das minorias”, enquanto estivermos inseridos em uma sociedade de classes. Nas palavras de Lênin: “enquanto existirem classes diferentes, pode-se falar apenas de democracia de classe”. Historicamente, podemos afirmar apenas a existência da democracia burguesa a qual foi introduzida para substituir as relações sociais de produção feudais e a qual perdura até hoje. A defesa da “democracia pura” é uma frase demagógica a qual mascara a verdadeira e vergonhosa intenção da “esquerda” atual que, em última instância, é a de defender os interesses da classe burguesa dando a eles o nome de Estado Democrático. Muda-se a fraseologia, mas como já colocou Marx: “não é lutando contra a fraseologia de um mundo que se luta contra o mundo que realmente existe”.

Para sustentar seus argumentos demagógicos a esquerda contemporânea busca apoio teórico a partir de uma leitura enviesada e distorcida de Marx. Espelhando-se na estratégia do renegado Kautsky, aproveita do marxismo aquilo que interessa à classe burguesa e rejeita aquilo que a compromete como classe dominante. Ou seja, aproveita a afirmação do papel histórico progressista do capitalismo em geral e da democracia capitalista em particular em comparação com as relações sociais feudais, ao passo que rejeita a luta revolucionária do proletariado contra a burguesia – essência da doutrina marxista.

Lênin aponta com maestria o erro crasso desta abordagem enviesada do marxismo: “A democracia burguesa, sendo um grande progresso histórico em comparação com a Idade Média, continua a ser sempre – e não pode deixar de continuar a ser sob o capitalismo – estreita, amputada, falsa, hipócrita, paraíso para os ricos, uma armadilha e um engano para os explorados, para os pobres”. Sendo assim, não podemos conceber a possibilidade de qualquer ascensão do proletariado por meio da democracia burguesa, mas apenas a partir de uma ruptura abrupta e definitiva com a forma de organização burguesa de Estado. Esta é a base da teoria marxista, a qual a pseudo-esquerda escolheu ignorar. Pelo seu posicionamento objetivo, que torna irrelevante suas justificativas subjetivas, é que podemos afirmar com toda a convicção que a esquerda contemporânea teve o seu papel reduzido ao de uma marionete do neoliberalismo.

De forma intencional e deliberada, estes renegados deram as costas à concepção marxista de Estado, definida por Marx como “a forma através da qual os indivíduos de uma classe dominante fazem valer os seus interesses comuns” e por Engels como “não mais do que uma máquina para a opressão de uma classe por outra e de modo nenhum menos na república democrática do que na monarquia”.

As leis que fundamentam a organização estatal contemporânea, a igualdade jurídica que confere o aspecto “igualitário” ao sistema social moderno e a apropriação excludente dos meios de produção pela classe burguesa escancaram a hipocrisia inerente à democracia burguesa tão prezada pela esquerda reformista. Todas as formas de Estado burguês defendem constitucionalmente o direito da classe dominante de estancar com violência e autoritarismo qualquer forma de divergência ou perturbação da ordem vigente advinda da classe trabalhadora, ou seja, qualquer forma de superação pela classe explorada da sua situação de escrava e de tentativas de não se comportar como escrava. A lei e o direito, apontados como conquistas pela esquerda renegada, não repousam, de forma alguma, sobre a vontade livre, mas estão acorrentados a apenas uma vontade: à da classe dominante.

A crise econômica mundial que vivenciamos atualmente reflete exatamente a submissão do Estado burguês aos banqueiros, à reprodução do capital e revela, portanto, um total descompromisso com a classe trabalhadora. Ao contrário do que a esquerda demagógica afirma, nos momentos de crise observamos a despudorada subserviência estatal à classe dominante: privatiza-se os lucros e estatiza-se os prejuízos às custas de um período de intensificação da opressão das massas.

Fechar os olhos a esta realidade e levantar entusiasmadamente a bandeira da democracia em defesa dos ideais burgueses de igualdade e justiça é o maior desserviço que a esquerda poderia prestar ao movimento de libertação da classe trabalhadora. É precisamente neste momento histórico que a esquerda revolucionária deveria utilizar de todas as suas forças para desmascarar o caráter pernicioso da democracia burguesa e denunciar as latentes contradições existentes entre a igualdade jurídica proclamada pelos capitalistas e a realidade econômica que tem a desigualdade e a exploração em suas bases.

Sua obrigação histórica era a de anunciar o fato de que esta igualdade formal anunciada com tanto entusiasmo como um dos grandes avanços da democracia burguesa garante apenas a liberdade para as grandes corporações explorarem ilimitadamente a força de trabalho, garantindo possibilidades ao acúmulo livre do capital nunca antes alcançadas; porém, do ponto de vista da classe trabalhadora, essa igualdade formal é fruto da cisão entre trabalhador e meios de produção e responsável, portanto, pela desigualdade social profunda, pela transformação dos trabalhadores em escravos assalariados.

Entretanto, as vozes dos socialistas revolucionários se calaram. O que se ouve é apenas o canto da sereia da pseudo-esquerda celebrando os louros e as “conquistas” da democracia burguesa, tentando extirpar pela raiz qualquer possibilidade da classe trabalhadora exercer seu papel de dirigente do processo revolucionário.

Essas constatações tornam inegável o fato de que a direita conservadora e a esquerda reformista se configuram em braços do mesmo corpo, estando submetidas ao mesmo centro de comando que é o neoliberalismo. O antagonismo ideológico que deveria impor um abismo entre essas duas vertentes políticas se reduziu a uma mera diferença retórica: enquanto a primeira deixa clara sua intenção de produzir e reproduzir as relações capitalistas de exploração, a segunda, com um discurso “progressista” de guardiã dos ideais democráticos, dissimula sua verdadeira função de entorpecer a classe trabalhadora garantindo o livre e pleno desenvolvimento das nefastas relações de produção capitalistas sintetizadas nas bandeiras do neoliberalismo.

Essa é a situação da classe trabalhadora no cenário político neoliberal. Guiada pelos passos cegos de uma esquerda oportunista que se “esqueceu” da luta de classes, que desapareceu com o processo revolucionário inerente à libertação das massas, que defende a hipócrita igualdade formal capitalista como igualdade de fato. Em suma, que afirma sua tradição renegada ao engajar-se na militância diária de transformar o marxismo em uma ideologia gradualista e neoliberal burguesa, difundindo uma visão monocular dos processos históricos para convencer os trabalhadores da universalidade dos valores burgueses. A conclusão não poderia ser diferente: a pseudo-esquerda se configura em um entrave para o livre desenvolvimento da história e, como tal, deve ser submetida a um combate sem tréguas.

Nossa proposta é exatamente esta. A de não deixar pedra sobre pedra desta nefasta face do neoliberalismo que sob pele de cordeiro mantém as massas no imobilismo. Não nos contentaremos com as pequenas e insignificantes reformas, com as migalhas concedidas à classe trabalhadora pela burguesia e tampouco as consideraremos avanços históricos a serem preservados como um ensaio para o processo revolucionário que baterá em nossa porta em um futuro incerto. A revolução socialista só acontecerá se nos mobilizarmos intencionalmente para tanto ao invés de nos limitarmos a amenizar as contradições qualificando como Estado democrático progressista aquilo que sempre foi e que sempre será a ditadura burguesa com suas diferentes roupagens.

A classe dominante está disposta a reformar tudo, menos aquilo que é essencial para romper com o modo de produção vigente. Deste processo manipulativo e desavergonhado ainda sai como meritosa por suas concessões “benevolentes”, “progressistas”, concessões estas que são para a classe trabalhadora não mais do que vitórias de Pirro. Não aturaremos mais isso. O tempo das reformas acabou, tendo perdurado por um período longo demais. É tempo da classe trabalhadora despertar do sono profundo induzido pelo revisionismo. É tempo de revolucionar.

- Larissa Bulhões D’Incao