terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Pernambuco e a raiz popular do Carnaval: "madeira de lei que cupim não rói"

Madeira de lei que cupim não rói![1]. "O Carnaval é a nossa mais forte expressão cultural e popular. Veio de fora, mas o povo daqui se apropriou de tal forma que de sua cara ao festejo. Falando de minha terra, Pernambuco, chega a ser incrível o que acontece por aqui". Texto da colunista do VàE, Mylena Cristina, sobre valorização cultural e perseguiçaõ a cultura popular de Pernambuco, sobretudo a perseguição que eventualmente vem ocorrendo agora, com o Maracatu:


Combatendo as tentativas de elitizar uma comemoração que é naturalmente popular e de rua, o povo vai atrás de suas troças históricas, maracatus, caboclinhos e não cede as tentativas de enfiar garganta abaixo os cordões, os camarotes e as tais áreas VIP's que tomam espaços que deveriam ser de todos.  O Carnaval de Pernambuco ainda é, apesar dos pesares, tipicamente de rua.

Só que esse ano a determinação de encerramento às duas horas da manhã está ameaçando diversas de nossas expressões carnavalescas. Impondo um toque de recolher à manifestações que até os horários são características seculares, um acordo feito entre órgãos públicos mostra pouco se importar ou entender as tradições culturais do povo que deveria representar.

Em Nazaré, um atentado ao povo.

Na madrugada da segunda-feira, 03/02, às duas horas da manhã, o Ministério Publico, acompanhado da Polícia Militar, cumpriu a tal ordem, encurtando a festa do Maracatu Cambinda Brasileira, no engenho Cumbe, que costumava raiar junto com o sol. O Cambinda é o Maracatu Rural mais antigo do Brasil e faz questão de manter suas raízes em Nazaré da Mata, município localizado na Zona da Mata de Pernambuco.



O Maracatu Rural ou Maracatu de Baque Solto, diferente do Maracatu Nação ou de Baque Virado, é uma manifestação cultural ligada à música folclórica pernambucana e que é marcada pela presença dos conhecidos caboclos de lança. Ou seja, além de fazer a manutenção do estilo Baque Solto, ele carrega consigo o trabalho de reavivar nossas expressões e tradições folclóricas.

Tal feito pede um preparo e manutenção que muitas vezes transpassa o que pode ser feito, então cabe ao povo daquela região juntar forças para ir além do possível. Os Maracatus de Baque Solto foram intimados a depor e não será apenas em Nazaré que problemas e arbitrariedades poderão ocorrer.

Indo além...

Em Goiânia, como ficarão as tribos de caboclinhos? Quais serão as implicações, em Bezerros, ao festejo dos papaguns? E os caiporas de Pesqueira? O que isso poderá provocar em Triunfo, no Sertão, e seus caretas? Em Afogados da Ingazeira, o que poderá trazer a riqueza da festa dos Tabaqueiros? E a saída dos blocos dos bichos em Vitória do Santo Antão? Ficarão desertas as clássicas madrugadas das ladeiras de Olinda? E o Recife Antigo, o Bairro de São José?

Não é de hoje que nossas expressões populares são perseguidas e não é de hoje que seguem a resistir. Se tirarmos o nosso maracatu como exemplo, veremos que ele é herança dos bravos negros que pra cá foram trazidos.


O batuque feito para homenagear a coroação do Rei do Congo era visto por segmentos da elite como ‘antro de vadios e desordeiros’, perturbador da paz e do sossego público.
"Os batuques, fossem eles de Xangô ou de Maracatu, invariavelmente recebiam inspeções da polícia, que prendiam seus praticantes e recolhiam os objetos de culto que encontravam nos terreiros. Desde os anos 1930, quando da divulgação das idéias modernistas e da realização do 1º Congresso Afro-Brasileiro, vimos ocorrer um movimento de transformação na visão da sociedade sobre os maracatus-nação. Na busca de símbolos que representassem o estado de Pernambuco e seu povo, os intelectuais procuram na cultura popular a fonte de inspiração. Manifestações antes vistas como atrasadas, resquícios de um passado colonial que a todo custo se desejava esconder, passam a ser revistas, assumindo novos espaços no contexto cultural do Estado.

Dentre as manifestações escolhidas como representativas da “pernambucanidade” está o maracatu-nação. Em um processo gradual e lento de legitimação, o maracatu é elevado de um lugar de discriminação e exclusão a um espaço que o reconhece enquanto marco da mais tradicional e autêntica cultura popular, emblema legitimo do Estado.” (Maracatu Itá)

Você pode até não gostar do fervor e preferir um sossego, o que não cabe questionamentos, mas fica claro que essa é uma questão que vai muito além de um simples festejo e merece nossa atenção. É um pedaço de nossa identidade, logo é um pedaço de nós.

Tirar o povo da rua é querer acabar com uma festa que é sua por origem e essência. E na tentativa de homogeneizar e higienizar, fica claro o crime contra nossa cultura. Parafraseando o grande Nelson Sargento², não deixe que mudem toda sua estrutura ou que sigam a te impor outra cultura sem você perceber. Se eles fazem agonizar, nós podemos deixar morrer.

Pela livre expressão da cultura popular! Abaixo ao ‘Carnaval Cinderela’!



Notas:

[1] Escrita pelo Mestre Capiba, a citação faz referência a canção de mesmo nome, ‘Madeira que cupim não rói’. Caso seja do seu interesse, na voz de Alceu Valença, em uma apresentação incrível e acompanhada de um breve desabafo sobre a situação da música pernambucana, escute-a: http://migre.me/hI6Mp .
[2] - A citação faz referência à música ‘Agoniza, mas não morre’, composta por Nelson Sargento, um dos maiores sambistas brasileiros. Caso seja do seu interesse, em uma apresentação acompanhada da grande Tereza Cristina, escute-a: http://migre.me/hI70L.