Texto
de Piero Locatelli e Rodrigo Martins. Matéria do site da revista Carta Capital.
Publicada originalmente na revista com o título de #VaiTerProtesto. A matéria traz
uma análise com um viés de posicionamento bem “brando” (de certo modo, não muito parcial), no entanto bastante
aprofundado no quesito informativo:
Na imagem, fotos de alguns dos grupos bastante presente em mobilizações. A segunda imagem de cima, um membro do Quilombo Raça e Classe; na terceira de cima, dois militantes da Unidade Vermelha - ORNL |
A quatro meses da Copa, as mobilizações contra o Mundial de Futebol continuam a desafiar as diferentes instâncias de governo envolvidas nos preparativos. Moradores atingidos por obras, militantes de movimentos sociais e partidos, jovens organizados pela internet e a classe média amedrontada pelo perigo bolivariano se misturam em uma rede de indignados, mais de seis anos após o País ser escolhido para sediar o evento esportivo. Um ensaio dos protestos ocorreu no último sábado 25 em oito capitais. Em São Paulo, uma manifestação convocada pelo Facebook por um perfil apócrifo reuniu cerca de 2 mil pessoas e terminou com as costumeiras depredações promovidas por black blocs, mais de 160 detidos e um jovem baleado, a vítima mais recente do despreparo das forças policiais para lidar com protestos. Nas demais cidades, a adesão foi menor e os atos transcorreram sem incidentes graves. Mesmo assim, as autoridades sentiram o golpe.
Em
viagem oficial ao exterior, Dilma Rousseff convocou uma reunião de emergência
com os ministros do Esporte, da Justiça e da Defesa. A preocupação é de
assegurar a paz nos jogos, mas os manifestantes temem que as polícias
estaduais, com o beneplácito da União, insistam na repressão em vez de abrir
canais de diálogo com a sociedade civil. As críticas se concentram nos vultosos
gastos públicos, que beiram os 30 bilhões de reais, e nas intervenções urbanas,
que, em larga medida, deixaram de lado a preocupação em estender os benefícios
da Copa a uma parcela maior da sociedade.
Na
frente do Brasília Shopping, um ato com apenas 50 manifestantes demonstrava
diferentes faces anti-Copa: black blocs, grupos da “esquerda revolucionária”,
coletivos de mulheres e direitos humanos, jovens travestidos e carnavalizados
com um discurso de moralidade política e combate à corrupção. Um homem tatuado,
vestido vermelho e máscara da presidenta incorporava a personagem “Dilmadura”.
Desfilava com desenvoltura entre as câmeras de fotógrafos e da tevê, mas se
recusava a conceder entrevistas. Enquanto os militantes de esquerda afinavam o
discurso contra o aspecto excludente da Copa, um servidor público, identificado
apenas como Fábio, repetia o bordão da ala conservadora: “Não tenho ligações
com partidos, sindicatos ou entidades de classe. Falo apenas em meu nome e em
nome do povo brasileiro, que está cansado da corrupção que assola este país há
500 anos”. E o que a Copa tem a ver com isso? “Tudo, meu amigo. Nunca se roubou
tanto dinheiro como agora.”
Sob
o vão livre do Masp, em São Paulo, uma fauna semelhante
se aglomerou no sábado 25. Algumas dezenas de manifestantes, organizados em
torno de um coletivo batizado como “Se Não Tiver Direitos Não Vai Ter Copa”,
montaram barracas. O estudante Vitor Araújo, 19 anos, leu um manifesto contra o
evento. Ele foi atingido pela PM durante um protesto no último 7 de setembro,
quando perdeu a visão de um olho. O coletivo era formado por organizações de
esquerda pequenas, como o Fórum de Saúde e a Anel, entidade estudantil ligada
ao PSTU, além de militantes autônomos. Ao lado, senhoras com os enfadonhos
narizes de palhaço, ativistas de direitos dos animais e manifestantes
contrários à verticalização do Centro da cidade.
Diante
do quadro disperso e heterogêneo, os militantes de esquerda tentavam liderar o
protesto. Quem o guiou, porém, foram os adeptos do black bloc, despertados da
letargia dos últimos meses. Apesar dos diferentes perfis de manifestantes, os
adeptos da tática do quebra-quebra foram os únicos a ganhar atenção nos dias
seguintes, no noticiário e nas redes sociais. Na Praça da República, um bloc
levou chutes e pauladas de espectadores de um show em comemoração aos 460 anos
de São Paulo. O Fusca do serralheiro Itamar Santos pegou fogo ao tentar
atravessar uma barreira dos manifestantes, quando um colchão em chamas ficou
preso ao carro. As cenas do velho Fusca consumido pelo fogo viraram uma arma de
quem combate as manifestações na internet. Uma campanha na rede mundial de
computadores para arrecadar fundos para Santos comprar um novo carro intitulada
#vaiterfusca arrecadou 7 mil reais em quatro dias.
As
ações dos blocs foram a justificativa para as
mais de 160 prisões naquela noite, o maior número desde junho do ano passado. O
estoquista Fabrício Chaves, 22 anos, acabou baleado pela polícia ao resistir à
prisão. Os policiais alegam ter disparado após Chaves sacar um estilete. O
secretário da Segurança Pública de São Paulo, Fernando Grella, defendeu a ação
da PM. “Não acho que seja manifestante quem anda com estilete, com materiais
supostamente explosivos”, afirmou, sem tecer maiores comentários sobre a
proporcionalidade da reação.
Esse
ensaio de manifestação deixou claro ao menos uma coisa: o grito “não vai ter
Copa” é muito mais uma palavra de ordem do que um objetivo. Embora tenham
posições políticas distintas, dezenas de manifestantes ouvidos por CartaCapital
concordam que o torneio não deve ser impedido com protestos. “Para mim, o ‘não
vai ter Copa’ tem outro significado: ‘Não vai ter Copa sem luta’. Não dá para
aceitar tanta lambança de forma passiva”, diz o historiador João Guilherme,
presente no protesto em Brasília. “Pode ter Copa, mas vai ser difícil entrar no
estádio e se locomover. E a responsabilidade é do governo, que decidiu fazer
uma Copa em detrimento do que precisamos”, diz Wilson Honorio, militante do
movimento negro Quilombo Raça e Classe, participante em São Paulo.
Apenas
os organizadores do ato paulistano parecem acreditar sinceramente na
possibilidade de interromper os jogos. “Para tanto, seria necessário o apoio
popular em todo o Brasil. Em junho de 2013, o MPL mobilizou a população e
reduziu a tarifa”, escreve o grupo “Contra Copa 2014” em entrevista via
internet. Por medo de perseguição, eles preferem não se identificar.
Para
conseguir conquistas com essas mobilizações, e
não ser atropelado por manifestantes de direita, o Comitê Popular da Copa de
São Paulo busca pautas concretas, chamadas de “nossos vinte centavos”. Entre as
reivindicações estão a garantia do trabalho de ambulantes durante o Mundial, a
revogação da lei que concede isenção fiscal à Fifa, auditoria popular da dívida
pública e até a desmilitarização da polícia. “Não vamos nos colocar de forma
genérica, como essa campanha ‘contra a corrupção’. Vai ser uma linha à
esquerda,” diz Marina Mattar, jornalista e integrante do comitê. Em todo o
Brasil, 12 comitês discutem constantemente uma pauta conjunta.
A
seção paulista foi formada em 2011 por diversas organizações e movimentos
sociais, além de militantes autônomos. Seus apoiadores reúnem de sem-teto a
grupos de teatro e anarquistas. No Rio de Janeiro, eles coordenaram
manifestações amplas há três anos, entre elas a resistência contra a demolição
de uma escola pública, do Museu do Índio e do Estádio de Atletismo Célio de
Barros, todos no entorno do Maracanã.
A
mobilização carioca mantém estreitas ligações com urbanistas, professores e
pesquisadores de universidades locais, e produz dossiês sobre as violações aos
direitos humanos, como as remoções forçadas de moradores por conta das obras da
Copa e das Olimpíadas, além de estudos que alertam para a tendência de uma
cidade mais desigual e a segregação de pobres.
“Em
qualquer lugar do mundo, os megaeventos esportivos são acompanhados de uma
série de intervenções urbanas que mudam a cara das cidades-sede. O problema é
que, no caso do Brasil, essas intervenções favorecem a elitização de certos
espaços e levam à realocação dos pobres nas áreas periféricas”, afirma Orlando
Santos Júnior, professor da UFRJ, pesquisador do Observatório das Metrópoles e
integrante do comitê carioca. “Há um clima de ‘vale tudo’ pela honra de sediar
um evento desse porte e atrair investimentos, mesmo quando os governos passam
por cima dos direitos da população, como ficou explícito no caso das remoções.”
Estima-se a existência de mais de 150 mil moradores realocados. O governo
federal nunca divulgou um balanço nacional dos desalojados.
Os
protestos a favor dos afetados pelas obras não vêm de agora. “Em 2009, quando o
Rio foi escolhido como sede das Olimpíadas de 2016, protestamos na porta do
Copacabana Palace. Tivemos a experiência ruim dos Jogos Pan-Americanos, que não
deixaram nenhum legado para a cidade e atropelaram os direitos da população
mais pobre. Não queríamos deixar isso acontecer de novo”, diz Inalva Mendes
Brito, professora da rede pública e moradora da Vila Autódromo, comunidade
ameaçada de remoção. “Há 20 anos tentam retirar os pobres da Barra da Tijuca.
Após o Pan, a pressão aumentou. Agora, a desculpa é a construção da
TransOlímpica.”
Em
2012, cerca de 2 mil manifestantes estiveram no evento
“Copa pra Quem?”, no Centro de São Paulo. No fim do ano passado, o MPL, a
Marcha da Maconha e a Frente de Luta por Moradia, entre outros, participaram da
Copa Rebelde dos Movimentos Sociais. Agrupamentos sem ligação com o comitê
também reclamaram. O Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto ocupou e fez
protestos em oito estádios. Em 2011, cerca de 2 mil militantes do MTST tomaram
a sede do Ministério do Esporte.
Alguns
manifestantes temem a escalada da violência estatal até o início dos jogos e
mudanças legais que possam embasá-la. Uma delas é a lei para “aumentar a
segurança” durante o evento, de autoria do senador e atual ministro da Pesca,
Marcelo Crivella (PRB-RJ). O projeto tipifica como terrorismo “provocar ou
infundir terror ou pânico generalizado” com penas de até 30 anos de prisão. A
proposta prevê ainda punição para quem “ofender a integridade corporal ou a
saúde de membro de delegação, com o fim de intimidá-lo ou de influenciar o
resultado da partida de futebol”. E restringe o direito a greve de diversas
categorias profissionais no período do Mundial. Uma manifestante resume o medo
da lei: “Não vale a pena protestar se for para eu ficar 30 anos na cadeia”. O
projeto aguarda votação no Senado.
Um
decreto do Ministério da Defesa, publicado em dezembro de 2013, prevê a atuação
das Forças Armadas em “Operações de Garantia da Lei e da Ordem” para “preservar
a ordem pública e a incolumidade das pessoas e do patrimônio” e prevenir a
“sabotagem nos locais de grandes eventos”. A presidenta pode requerer o apoio
do Exército quando “o esgotamento (das forças de segurança) decorrer de
movimentos contestatórios”. Segundo o ministro Celso Amorim, a ação visa
unificar os procedimentos das três Forças Armadas, e não tem relação direta com
os protestos.
O
governo federal apega-se a pesquisas internas, segundo as quais a maioria da
população quer a Copa, está feliz com a sua realização no Brasil e acha que ela
trará benefícios. Aposta, portanto, em manifestações pequenas, com pouca
adesão. “Indicadores mostram que a maioria dos brasileiros, apesar de querer
mais saúde e mais educação, também quer a Copa do Mundo. Não é a Copa ou a
saúde, é a Copa e a saúde”, diz um assessor do Planalto. “Os integrantes do
‘não vai ter Copa’ são franca minoria, 1%.”
O
Palácio do Planalto dá como certa, porém, a ocorrência de manifestações
barulhentas e violentas. Até por isso, não está disposto a negociar previamente
com os movimentos. Para o governo, não haveria o que discutir, pois o espaço
para o diálogo não existe quando uma das partes simplesmente rejeita o evento.
A
estratégia de segurança será a de evitar depredações. O Ministério da Justiça
vai coordenar um plano de trabalho em parceria com as secretarias estaduais de
Segurança Pública, mas o governo federal pretende deixar claro que cuidar das
polícias não é sua atribuição. “Quem comanda a polícia são os estados, não
somos nós. Eles têm autonomia, segundo a Constituição. O ministro da Justiça
não pode baixar em São Paulo e dizer como os policiais devem se comportar”,
pondera o assessor presidencial. A União se limitará a colocar a Força Nacional
e a Polícia Federal à disposição. As Forças Armadas só serão acionadas em
situações excepcionais.
Estimulados
diretamente ou não por Brasília, os movimentos pró-Copa também se
intensificaram. Para conter o #nãovaitercopa, difundiu-se a campanha
#vaitercopa, adotada até pela presidenta. Em seu mais recente encontro com o
presidente da Fifa, Joseph Blatter, no intervalo do Fórum Econômico Mundial em
Davos, na Suíça, Dilma Rousseff voltou a classificar o torneio de “a Copa das
Copas”. Em sua passagem por Cuba, a presidenta voltou a criticar os
manifestantes: “Não perceber a importância da Copa é visão pequena”.
Dirigentes
do PT negam uma ação coordenada. “Não formulamos campanha alguma. O #vaitercopa
foi um teaser de momento, usado pela nossa equipe nas redes sociais”, diz José
Américo, presidente da Câmara de Vereadores de São Paulo e secretário nacional
de Comunicação do partido. “Em nenhum momento pensamos em fazer uma contraposição
às ruas. As manifestações são legítimas e é até salutar que ocorram, sobretudo
para fiscalizar os gastos públicos.”
A
estratégia da legenda, segundo Américo, é “priorizar o esclarecimento” da
população sobre a importância do Mundial e desfazer “equívocos” que circulam na
internet. “Vira e mexe nos deparamos com dados inflacionados ou informações
enviesadas, que tratam financiamentos do BNDES para empreendimentos privados
como gasto público.”
Uma
das pesquisas recorrentemente citadas pelo governo é um estudo da consultoria
Ernst & Young em parceria com a Fundação Getulio Vargas, que previa 142
bilhões de reais a mais na economia entre 2010 e 2014, além da geração de 3,63
milhões de empregos.
Os
benefícios não devem servir de justificativa
para passar por cima dos direitos da população, rebate Orlando Júnior, da UFRJ.
O urbanista ainda critica o governo por “homogeneizar e desqualificar” os
manifestantes. “Agora, todo mundo é visto como direitista ou instrumentalizado
pela oposição, como se a maioria dos participantes dos protestos não fosse de
militantes de esquerda, muitos deles com histórico de lutas com o PT. Seria
mais inteligente aprender a ouvir, abrir canais de diálogo e desenterrar a
reforma do nosso caduco sistema político.”
Os
manifestantes prometem continuar mobilizados até o fim do evento. O MTST,
movimento que tem levado o maior número de militantes às ruas de São Paulo
desde junho, deve reforçar os protestos a partir de 13 de maio. Páginas
apócrifas na internet conclamam novos protestos. Uma efeméride pode dar força
aos protestos na capital paulista. Em 19 de junho, completará um ano que o
prefeito petista Fernando Haddad e o governador tucano Geraldo Alckmin
anunciaram a redução da tarifa de ônibus e metrô, a mais clara vitória das passeatas
do ano passado.
Os
governantes levam uma vantagem desta vez. Ao contrário de junho, quando a voz
das ruas surpreendeu a todos, há informações suficientes sobre o mal-estar e as
reivindicações da população, ou de uma parte dela. Repetir os erros de 2013,
principalmente a repressão desproporcional, só tende a esquentar a panela de
pressão. No caos, os grupos organizados perderiam espaço para a turma “contra
tudo que está aí”. E estes, a história ensina, costumam, no fundo, defender as
piores opções.
-
Piero Locatelli e Rodrigo Martins. Fonte: CartaCapital