sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

Anotações de Marx ao livro de Bakunin "O Estado e a anarquia"

Neste texto, Karl Marx faz anotações de caráter crítico ao livro do teórico anarquista Mikhail Bakunin. Neste livro, como mostra Marx durante as anotações, há vários erros de Bakunin sobre o comunismo científico. Mais tarde, tais críticas de Bakunin à concepção marxista se mostram cientificamente refutadas sobre a experiência da revolução russa, sobretudo com a criação da República proletária Soviética! 

Abaixo, o texto. Em itálico e clareado, os escritos de Bakunin; em fonte normal, as intervenções de Karl Marx.

“Nos últimos tempos, o filisteu alemão começa de novo a sentir um terror sagrado ante as palavras: ditadura do proletariado. Pois bem, senhores, quereis saber o que é essa ditadura? Olhai a Comuna de Paris. Eis aí a ditadura do proletariado”. (Engels em introdução do livro Guerra Civil na França).

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Já apontamos nossa profunda repugnância pela teoria de Lassale e Marx, que recomenda aos operários, senão como ideal supremo, pelo menos como objetivo imediato e principal a instauração de um Estado popular, o qual, segundo sua expressão, não será senão o proletariado erigido em classe dominante. E alguém se pergunta: quando o proletariado seja classe dominante, sobre quem vai dominar? Isso significa que restará de pé outro proletariado, submetido a esta nova dominação, a este novo ‘Estado’”.

Isto significa que enquanto subsistam as outras classes e especialmente a classe capitalista, enquanto o proletariado lute contra elas (pois com a subida do proletariado ao poder não desaparecem todavia seus inimigos, nem desaparece a velha organização da sociedade) terá que empregar medidas de violência, a saber, medidas de governo. Enquanto o proletariado seja todavia uma classe e não tenham desaparecido as condições econômicas nas quais descansa a luta de classes e a existência destas, será preciso, pela violência, tira-las do caminho ou transforma-las, será preciso acelerar pela violência seu processo de transformação.
 
“Por exemplo, a vulgar massa camponesa, a ‘plebe camponesa’ que, como se sabe, não goza das simpatias dos marxistas e que se acha no mais baixo nível de cultura, será governada provavelmente pelo proletariado urbano e fabril”.

Isto significa que ali onde o campesinato existe todavia em massa como proprietário privado, onde inclusive forma uma maioria mais ou menos considerável, como em todos os Estados ocidentais do continente europeu, onde este camponês não desapareceu, substituído por jornaleiros agrícolas, como na Inglaterra, ocorrerá o seguinte: ou se dedica a obstaculizar toda revolução operária até fazê-la fracassar, como ocorreu até agora na França, ou o proletariado (pois o camponês proprietário de sua terra não pertence ao proletariado e, se por sua situação pertence, não se crê parte dele) tem que adotar como governo medidas encaminhadas a melhorar imediatamente a situação do camponês e, portanto, ganha-lo para a revolução; medidas que levem já no gérmen o trânsito da propriedade privada sobre o solo à propriedade coletiva e que suavizem este trânsito, de modo que o camponês vá a ele impulsionado por móveis econômicos; porém não deve encurralar o camponês proclamando, por exemplo, a abolição do direito de herança ou a anulação de sua propriedade; este último só é possível ali onde o arrendatário capitalista deslocou o camponês e o verdadeiro lavrador é tão proletário, tão operário assalariado como o operário da cidade e onde, portanto, tem diretamente, não indiretamente, os mesmos interesses que este; ainda menos se deve fortalecer o regime de propriedade parcelaria, aumentando as parcelas pela simples anexação das grandes fazendas às terras dos camponeses, como na campanha revolucionária de Bakunin.

“Ou, se enfocamos o problema desde o ponto de vista nacional, imaginamos, pela mesma razão, que para os alemães, os eslavos seguirão achando-se, com respeito a um proletariado alemão triunfante, na mesma submissão servil na qual este se acha hoje com relação à sua própria burguesia”.

Que estupidez de escolar! Uma revolução social radical se acha sujeita a determinadas condições históricas de desenvolvimento econômico; estas são sua premissa. Portanto só pode dar-se ali onde, com a produção capitalista, o proletariado industrial ocupe, pelo menos, uma posição importante dentro da massa do povo e, para ter alguma probabilidade de triunfar, tem que ser, pelo menos, capaz de fazer imediatamente pelos camponeses, mutatis mutandis, tanto como a burguesia francesa, em sua revolução, fez pelos camponeses franceses daquela época. Bela idéia a de que a dominação dos operários leva consigo a escravização do trabalho agrícola! Porém aqui é onde se revela o pensamento íntimo do senhor Bakunin. Decididamente, ele não compreende nada da revolução social; só conhece sua fraseologia política; para ele, não existem as condições econômicas desta revolução. Como até aqui todas as formas econômicas –desenvolvidas ou não –implicavam a escravização do trabalhador (seja operário, camponês, etc), acredita que em todas elas é igualmente possível a revolução radical. Mais ainda: pretende que a revolução social européia, baseada nos fundamentos econômicos da produção capitalista, se leve a cabo sobre o nível dos povos russos ou eslavos dedicados à agricultura e ao pastoreio e não rebaixe este nível ainda que compreenda que a navegação marítima estabelece uma diferença, entre irmãos, porém só a navegação marítima, por ser esta uma diferença que todos os políticos conhecem. A base de sua revolução social é a vontade e não as condições econômicas.

“Se existe o Estado, se faz inevitável a ‘dominação’ e a escravidão; dominação sem escravidão, manifesta ou oculta, não se concebe; eis aqui porque nós somos inimigos do ‘Estado’”. “O que significa o proletariado ‘erigido em classe dominante’”?

Significa que o proletariado, em vez de lutar de modo desconexo contra as classes econômicamente privilegiadas, possui a força e a organização suficientes para empregar, em sua luta contra elas, medidas gerais de coação; porém, no terreno econômico, só pode empregar medidas que destruam seu próprio caráter de assalariado e, por conseguinte, sua característica de classe. Por conseguinte, com seu triunfo completo cessará também sua dominação, ao cessar seu caráter de classe.

“Por acaso vai colocar-se todo o proletariado à cabeça do governo”?

Acaso em um sindicato (tradeunion), por exemplo, se coloca todo o sindicato na direção? Acaso vai cessar na fábrica toda divisão do trabalho e as diversas funções que dela derivam? Na construção bakuninista de “baixo pra cima” por acaso todos estarão em cima? Então não haveria nenhum “abaixo”. Por acaso todos os indivíduos de um município administrarão no mesmo grau os interesses comuns da “província”? Se assim fosse, não haveria diferença alguma entre município e “provícia”.

“Os alemães são aproximadamente 40 milhões. Por acaso todos estes 40 milhões formarão parte do governo”?

Certamente, posto que a coisa começa pelo governo autônomo do município.

“Se todo o povo governa, não haverá governados”.

Quando um homem governa a si mesmo, segundo estes princípios não se governa, posto que é ele mesmo e não outro.

“Então não haverá governo nem haverá Estado, porém se há Estado haverá também governantes e haverá escravos”.

Quer dizer, simplesmente: só quando desapareça o regime de dominação de classe, deixará de haver Estado no atual sentido político desta palavra...

“Na teoria dos marxistas, este dilema se resolve facilmente. Por governo popular, eles (a saber, Bakunin) entendem que o povo seja governado por meio de um punhado de representantes eleitos por ele”.

Burro! Isto é uma tolice democrática, um vazio político! As eleições são uma forma política até na menor comuna russa e no artel. O caráter das eleições não depende do nome, senão da base econômica, das relações econômicas dos eleitores entre si, e tão logo as funções deixem de ser políticas 1) deixam de existir como funções de governo, 2) a distribuição das funções gerais se converte em um problema administrativo, que não encerra domínio algum, 3) as eleições não conservam nada de seu caráter político atual.

“A eleição, por sufrágio universal de todo o povo”...-

isso de todo o povo, no sentido atual da palavra, é uma fantasia,

“- de representantes do povo e governantes do Estado é a última palavra, tanto dos marxistas como da escola democrática; uma mentira atrás da qual se esconde o despotismo de uma minoria governante, tanto mais perigoso quanto se apresente como expressão da chamada vontade popular”.

Sobre a base da propriedade coletiva desaparece a chamada vontade popular para ceder o posto à verdadeira vontade da coletividade cooperativa.

“Em suma: direção da grande maioria da massa popular por uma minoria privilegiada. Porém esta minoria, dizem os ‘marxistas’”...

Onde?

“...estará formada por trabalhadores. Sim; permita-se-me: por antigos trabalhadores, porém que apenas se convertam em representantes ou governantes do povo deixarão de ser trabalhadores”

Nem mais nem menos que hoje um fabricante deixa de ser capitalista porque o fazem conselheiro de sua prefeitura.

“E olharão o vulgar mundo dos operários desde as alturas ‘estatais’; já não representarão o povo, senão a si mesmos e a suas ‘pretensões’ de governar o povo. O que ponha isto em dúvida, é porque não conhece nada da natureza humana”.

Se o senhor Bakunin conhecesse, pelo menos, a posição que ocupa o gerente em uma cooperativa operária iriam ao diabo todas as suas fantasias sobre a dominação. Devia ter-se perguntado: que forma podem assumir as funções administrativas, sobre a base desse Estado operário? (se lhe apraz chamar assim).

“Porém estes homens escolhidos serão socialistas ardentemente convencidos, e portanto socialistas científicos”.

As denominações de “socialismo culto” que não aparece empregada jamais, e “socialismo científico” empregada somente por oposição ao socialismo utópico, que pretende entulhar o povo com novos fantasmas cerebrais em vez de limitar seus conhecimentos ao estudo do movimento social desenvolvido pelo povo mesmo; veja-se meu livro contra Proudhon,

“que se empregam constantemente nos livros e discursos dos lassaleanos e marxistas, ‘demonstram, por si mesmas’, que o chamado Estado popular não será outra coisa que o governo mais despótico das massas do povo por uma nova e muito reduzida aristocracia de sábios reais ou supostos. O povo não é científico, o que quer dizer que deve-se aparta-lo em absoluto dos cuidados do governo, que deve-se encerra-lo por completo no estábulo governado. Bela emancipação”! “Os marxistas advertem esta contradição (!) e, dando-se conta de que este governo dos sábios”...

(Que fantasia!)

“...seria o mais insuportável, o mais odioso e o mais desprezível do mundo, de que, em que pese todas as formas democráticas, seria uma verdadeira ditadura, se consolam pensando que essa ditadura só será passageira e de curta duração”.

Não, amigo! A dominação de classe dos operários sobre as camadas do mundo velho que ofereçam resistência deve durar até que se destrua a base econômica sobre a qual descansa a existência de classe.

“Dizem que sua única preocupação e seu único objetivo será educar e elevar o povo (politiqueiro de café!), tanto econômica quanto políticamente, a tal altura que logo não faça falta nenhum governo e o Estado perca todo caráter político, a saber, ‘de dominação’ e se converta por si mesmo em uma livre organização de interesses econômicos e de comunas. Aqui temos uma contradição manifesta. Se seu Estado será verdadeiramente popular, pra quê aboli-lo? E se faz falta destruí-lo para liberar realmente o povo, como se atreve a chama-lo popular”?

Prescindindo da insistência com que se refere ao Estado popular de Liebknecht, que é uma tolice, dirigida contra o Manifesto Comunista, etc., isso só significa: como o proletariado enquanto luta por derrocar a velha sociedade, todavia atua sobre a base dessa velha sociedade, e portanto se move ainda sob formas políticas até certo ponto próprias dela, durante este período de luta não adquiriu ainda sua organização definitiva e aplica para sua emancipação medidas que depois desta não tem aplicação; da onde o senhor Bakunin infere que ao proletariado lhe valeria mais não fazer nada e...esperar o dia da liquidação geral: do juízo final.

“Com nossa polêmica  (polêmica que, naturalmente, veio à luz antes que meu livro contra Proudhon e antes que o Manifesto Comunista e até antes de Saint-Simon) contra eles os temos obrigado a fazer a confissão de que a liberdade ou a anarquia (o senhor Bakunin não fez mais que traduzir a anarquia de Proudhon e de Stirner ao tosco idioma tártaro), a saber, a livre organização das massas operárias debaixo acima”...

Que tolice!,

“...é a meta última do progresso social e que todo ‘Estado’, sem excluir o Estado popular, é um jugo que engendra de um lado despotismo e do outro escravidão”.

- Escrito por Karl Marx entre 1874 e começos de 1875. Publicado pela primeira vez em 1926.

* O trabalho realizado por Marx ao anotar o livro de Bakunin “O Estado e a Anarquia” esteve vinculado estreitamente à luta ideológica e política dos adeptos de Marx e Engels contra o anarquismo, luta que prosseguiu também depois da derrota dos bakuninistas no terreno ideológico e de organização no Congresso de Haya (1872).

O resumo feito por Marx do livro de Bakunin é uma original obra crítica e polêmica, na qual a revelação do ponto de vista de Bakunin, inimigo principal do marxismo naquela época e ideólogo do anarquismo, se conjuga com a profunda crítica das doutrinas anarquistas e com o desenvolvimento, em oposição a elas, dos postulados mais importantes do comunismo científico acerca do Estado, a ditadura do proletariado e a aliança da classe operária com o campesinato como condição indispensável para a vitória da revolução socialista. Marx formulou estes postulados em uma série de interpolações no manuscrito do resumo. Fez este resumo pouco depois de ver sair o livro de Bakunin, editado em Genebra em 1873, e acolhido pelos meios bakuninistas como uma obra programática.