quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Sabe isso de agredir mercadores e quebrar caixas de dinheiro? Jesus também fazia.

Aqui está um trecho da obra “Capitalismo, Religião Global”, do autor Leandro Cruz. O texto abarca questões como a relação política do governo romano para com o Oriente Médio. Além disso, questões econômicas, como a questão da circulação de moedas com símbolos alusivos ao "César" em regiões predominantemente judáicas. Isso poderia explicar partedos tensionamentos na época naquelas regiões, e também a famosa cena bíblica de Jesus no templo, com um chicote em mãos, após ver a "moeda de César" circulando até mesmo dentro do templo.

"Os pobres que se tornavam cristãos podiam deixar de depender do pão oferecido pelo Estado nos sangrentos jogos e das carnes oferecidas aos deuses romanos por ocasião dos festivais, por exemplo . Isso era possível porque os cristãos formavam comunidades e redes de ajuda mutua, chegando em muitos casos a abolirem a propriedade particular e terem tudo em comum como assegura Lucas em Atos: “E todos os que criam estavam juntos, e tinham tudo em comum” (At 2:44). 

E ainda sobre a primeira comunidade cristã, Lucas continua: “vendiam suas propriedades e bens, e dividiam-nos entre todos, segundo as necessidades de cada um” (At 2:44). Algumas comunidades cristãs tinham até mesmo filhos em comum. Se existe algo divino, algo divino estava acontecendo ali, algo suficientemente forte para deixar césares e generais com muito medo dessa gente pacífica que gostava de jantar junto. 

Já discuti em outras ocasiões sobre a passagem do Evangelho em que Jesus diz “dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”, presentes em Lucas 20:20-26, Mateus 22:15-22 e Marcos 12:13-17. A interpretação que “pastores” e outros chacais da fé de hoje em dia dão a esse trecho é exatamente o oposto daquele que o carpinteiro pretendia quando falou a famosa frase. O mal entendido é tão grande e grave para a história do pensamento que vale a pena ser redundante e narrar novamente. Primeiro, viajemos até a primeira metade do século I d.C. e vejamos o trecho:

“Depois eles lhe enviaram alguns dos fariseus e dos herodianos para o apanhar em alguma palavra. 

Estes, vindo a ele, disseram: Mestre, sabemos que és verdadeiro, e não se te dá de ninguém; porque não te deixas levar de respeitos humanos, mas ensinas o caminho de Deus segundo a verdade; é lícito ou não pagar tributo a César? 

Pagaremos ou não pagaremos? Mas Jesus, percebendo a hipocrisia deles, respondeu-lhes: Por que me experimentais? trazei-me uma moeda para eu vê-la.

Eles lho trouxeram. Perguntou-lhes: De quem é esta efígie e inscrição? Responderam-lhe: De César. 

Disse-lhes Jesus: Dai, pois, a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus. Admiravam-se muito dele”.

Evangelho segundo Marcos 12:13-17

Os interpretes tradicionais, mais comprometidos com a manutenção do status quo do que com a Verdade e a originalidade da fé cristã, afirmam que aí Jesus estaria dizendo ser legítimo que as pessoas pagassem impostos ao dominador romano. Na verdade a sentença, cheia de astúcia, sem falar diretamente contra o pagamento de impostos, propõe algo ainda mais radical: a completa retirada da presença de Roma do Templo e da Terra Santa. Isso deveria incluir a renúncia ao dinheiro romano.  

Mesmo que os evangelhos tenham sido escritos anos depois da morte do Jesus histórico, mesmo que lendas possam ter sido misturadas aos fatos e que hajam discursos e passagens ocorridas com mais de um personagem histórico que foram posteriormente atribuídas a uma única pessoa, esse diálogo do “a César o que é de César” é uma das passagens que mais historiadores acreditam ser verossímeis.

Vejamos o contexto em que isso ocorre. A região entre o Mediterrâneo e o Jordão era a periferia do Império Romano. A Leste, o que havia era o Império Persa, tão avançado (ou mais) que o império Romano, tanto em termos científicos e tecnológicos, quanto literários e filosóficos. Incrivelmente, até hoje existe um muro cultural no Ocidente, de modo que nos são negados em nosso sistema educacional os saberes e pensamentos de civilizações orientais como a Pérsia Sassânida ou a civilização Védica.

Mas o fato é que Roma não dominava todo o mundo, como gostavam de fazer crer seus imperadores. Essa periferia oriental do império, espremida entre Roma e Pérsia, terra onde viviam majoritariamente judeus, era importante para a segurança e estabilidade do Império. Era uma “zona tampão” entre os persas e Roma. Por isso, nos primeiros anos da “parceria” que virou escravidão, Roma respeitava até mesmo os símbolos e tradições judaicas para garantir a simpatia e colaboração de seus colonizados.

Ao contrário da grande opressão à qual estavam sujeitos outros povos subjugados, a princípio, os dominadores não exigiam muita coisa dos israelitas além de que não fossem aliados dos persas.

Várias concessões eram feitas aos judeus. O judaísmo tinha status de religio licita, isto é, não havia sido proibido, como ocorrera com outras religiões de outros povos dominados.

Eles não eram obrigados a adorar César como deus, podendo substituir essa prestação de homenagem pela imolação de um cordeiro a seu deus de nome impronunciável com intenção em favor do soberano de Roma.

O Templo de Jerusalém era um dos únicos edifícios importantes em uma grande cidade do Império dispensado de exibir símbolos romanos como a águia ou estátua de César.

O interdito religioso judeu que proíbe a confecção de imagens tanto humanas como de animais era levado tão a sério pelos judeus do período romano, que até os anos 20 do século I as moedas romanas cunhadas na Judeia podiam ter uma cunhagem diferente, sem o rosto do imperador nem a imagem de nenhum outro ser vivo. Mas o valor era o mesmo, pois a indexação monetária simbólica do dinheiro estava mais associado ao peso da moeda e ao metal utilizado do que necessariamente ao que ele estampava. A imagem cunhada era uma especie de “selo fiscal”. E, nessa região sensível politicamente, Roma permitia selos “alternativos”, mas igualmente oficiais.  

Havia por parte dos romanos um reconhecimento do sumo sacerdote e do conselho do Sinédrio como autoridades religiosas. Eles podiam também construir sinagogas, observar o sábado.

Outra concessão só feita aos judeus era que eles não eram obrigados a alojar tropas romanas em campanha, nem a pagar taxas por essa isenção, pois, de acordo com a crença dos israelitas, a presença de um estrangeiro pagão (goy) em casa tornava a habitação impura.

Os judeus também não precisavam prestar serviço militar obrigatório, pois os generais romanos não queriam em suas tropas soldados que se recusassem a lutar no sábado ou a comer determinados alimentos.

O povo podia também pagar Didracma (duas dracmas), imposto que em vez de ser pago aos romanos, ia para a manutenção e embelezamento do Templo de Jerusalém, também como parte da política de tolerância religiosa. No Templo, os judeus eram roubados por seus próprios compatriotas da casta sacerdotal.

A relativa “brandura” da dominação não significava muito para os israelitas mais religiosos, que viam na simples presença de um estrangeiro nos locais sagrados motivo de revolta. O ódio e desejo de independência aumentavam ao longo dos anos de maneira gradual, conforme Roma retirava dos habitantes de Eretz Israel aqueles privilégios antes concedidos. 

As medidas de controle começam a ganhar forma já no ano 6 a.C. (provável ano do nascimento de Jesus) com o primeiro grande recenseamento da área.

No ano 4 a.C., Herodes Magno morre e Eretz Israel é dividida em quatro porções. A partir de então, os judeus já não têm nem mesmo um soberano de fachada, subserviente aos romanos nos bastidores. Arquelau “governa” a Samaria e a Idumeia; Herodes Antipas fica com a Galileia e a Pereia; e Herodes Filipe com a Itureia e Taconidite. 

Roma, no entanto, fazia questão de que fosse sempre romano o procurador da Judeia, província central de Eretz Israel onde se localizava a capital religiosa judaica, Jerusalém.

Enquanto príncipes herodianos (totalmente vendidos) administraram as províncias periféricas, pela Judeia passaram homens como Copônio Ambíbolo, Ânio Rufo, Pôncio Pilatos, Marcelo, Cúspio Fado, Tibério Alexandre, Ventídio Cumano, Antônio Félix, Pócio Festo, Albino e Gésio Floro.

Roma aumenta paulatinamente seu poder na área. Para se ter uma ideia, até o sumo sacerdote do Templo passa a ter que ser autorizado pelos romanos para assumir o cargo.

Quando, em 26 d.C., Pôncio Pilatos se torna governador da Judeia, acaba com uma série dessas liberdades das quais o povo hebreu gozava e ordena que as moedas passem a conter a efígie do Imperador.

Flávio Josefo nos conta que certa vez Pilatos ordenou que fossem colocados estandartes romanos dentro do recinto do Templo. Não permitindo tal ultraje ao lugar mais sagrado de sua religião, os judeus impedem a ação. Devido à resistência, Pilatos diz que mataria aqueles que se opusessem.

Diante disso, os mais zelosos se inclinaram e descobriram seus pescoços para mostrarem que preferiam ser decapitados a verem o santuário profanado. Para não ter que matar tanta gente de uma só vez logo no começo do período de exercício de sua função, Pôncio Pilatos recuou. Foi um exemplo sem precedentes de resistência não violenta na História do Ocidente.

Mas o procurador tinha um “plano B”, uma maneira de humilhar os dominados colocando símbolos romanos no local mais ligado à identidade nacional deles. Pouco tempo depois do episódio da resistência pacífica, Pilatos retira a autorização de se circularem na região moedas sem a efígie do imperador, Tibério César na época.  

É dessa maneira, no dinheiro, que os símbolos romanos vão penetrar no coração do templo de Jerusalém, o local mais sagrado para a religião que proibia a reprodução de imagens humanas. E a imagem em questão era de um César que se declarava divino.

Muito se discute acerca do significado da expressão de Jesus “Devolvei, pois, a César o que é de César”, mas talvez tenha causado mais barulho na época a continuação do discurso do pregador, “e a Deus o que é de Deus”. A frase de efeito não era uma apologia ao cumprimento das obrigações fiscais para com o dominador, mas sim uma forte crítica ao fato de o Templo estar sendo profanado pelos romanos, entre outras coisas, através da figura de César presente nas moedas.

Jesus questionava aí a conivência de fariseus que embora gritassem por justiça carregavam essas moedas profanas em suas bolsas, e ao saduceus que faziam alianças com os romanos. Dizer “Devolvei a Deus o que é de Deus” pode ser traduzido por “O templo deve ser purificado da presença da idolatria, da presença da Roma pagã, inclusive no dinheiro”. A fala de Jesus é uma crítica contumaz a um acontecimento recente, a unificação monetária.

Mais do que dizer para não pagar impostos (o que ele não diz abertamente), Jesus prega que se desconsidere o valor e abandone o uso de moedas romanas. E mais do que isso ainda, é uma mensagem de desapego ao dinheiro e ao estado. Essa postura de renúncia ao mundo, que seria seguida por comunidades cristãs dos três primeiros séculos é justamente o que o Império mais temia. O cristão dos primeiros séculos entendia que, se ele próprio era “de Deus”, não podia ser de César nem de ninguém. Logo, cristão não reconhecia escravidão (a posse de um ser humano por outros ser humano) nem as autoridades “desse mundo”.

E, graças à colaboração entre iguais, os cristãos primitivos se tornavam cada vez mais autônomos em relação ao Sistema, uma vez que a dependência é o que mantém as pessoas escravas do sistema.

Se o pregador andarilho da Galileia foi muito sagaz e sutil no dia da pergunta capciosa sobre os impostos, ele não seria tão sutil numa outra ocasião. Ele teve uma atitude mais ativa e nada sutil com relação a mercadores da fé, vendedores de animais, e banqueiros no Templo de Jerusalém. No episódio que aparece em Mc 11, Mt 21, Lc 19 e Jo 2, Jesus expulsou os chamados “vendilhões” usando um chicote de corda (provavelmente tomado das mãos dos que vendiam animais para sacrifício). Ele virou as bancas, espalhando o dinheiro no chão do templo lotado e “muvucado”. Ainda falou pra todo mundo ouvir que os sacerdotes e comerciantes eram um bando de ladrões que tinham feito do Templo o seu covil. Foi o tipo de atitude que os anarcopunks chamariam de “ação direta”.

O tumulto no Templo é outra dessas passagens que a maioria dos historiadores que pesquisam o Jesus histórico concordam que deva ter ocorrido de fato. O tumulto no Templo deve ter sido a principal causa de sua prisão e condenação, ou, pelo menos, o pretexto para deter aquele que até então silenciosamente iniciava uma revolução comportamental contando histórias sobre semeadores, vinhateiros e pés de mostarda." 

- Leandro Cruz