“Arqueólogos
do Instituto de história da Academia de Ciências Sociais da Coreia do Norte
recentemente confirmaram o covil do unicórnio usado pelo Rei Tongmyong.” A nota
da agência de notícias oficial da Coreia do Norte, publicada em 30 de novembro
de 2012, circulou pelo mundo. Veículos de comunicação repercutiram com uma
interpretação literal: o governo do país dizia ter achado o lugar onde morava
um ser mitológico.
A
interpretação da notícia gerou revolta em alguns brasileiros. Justificavam que
aquele era o nome de um local e não tinha relação direta com a existência de
unicórnios. “É como falar que a Garganta do Diabo, aqui no Brasil, é a prova da
existência do diabo. Não tem sentido”, argumenta o estudante de sociologia
André Ortega, de 19 anos.
Ortega
faz parte de um grupo dedicado ao estudo do juche, o marxismo adaptado à
realidade coreana concebido por Kim Il-sung, fundador e eterno presidente do
país. Desde 2010, eles mantêm o “Blog de Solidariedade a Coreia Popular”. Na
descrição, dizem fazer um “contraponto às mentiras e deturpações promovidas
pela imprensa ocidental”. Há mensagens elogiosas de líderes norte-coreanos
sobre Stalin, textos sobre música revolucionária e muitas críticas à imprensa.
Em
uma das postagens, rebatem uma reportagem de Marcus Uchôa, da TV Globo, após um
jogo entre a seleção da norte-coreana e a brasileira na Copa do Mundo de 2010.
Eles justificam por que os jogadores não queriam falar com o jornalista. “É
claro que os coreanos, como genuínos patriotas e amantes da causa socialista e
da paz mundial, jamais gostariam de perder tempo ouvindo a provocações e
comentários inúteis com o intuito de ridicularizar a Coreia Popular e seu
grande líder Kim Jong-il.”
O
grupo é atualmente formado por dez homens. A reportagem conversou com cinco
deles que têm algo em comum: entraram em contato com o marxismo no começo da
adolescência e buscaram exemplos de socialismo real por conta própria.
“Eu
tinha um contato muito forte com a figura do Stalin, que eu admirava bastante.
Estudando a história do desenvolvimento do comunismo internacional, eu acabei me
deparando com a questão da Coreia, que era sempre um país muito demonizado,
atacado. Aí eu tentei buscar uma visão diferente dos fatos, do que falavam
sobre o país,” diz o estudante de engenharia Alexandre Roseno, 18.
Apoio
de Kim Jong-Un
A
mesma agência responsável pela notícia da caverna do unicórnio fala
esporadicamente dos trabalhos do grupo. A primeira vez foi em 12 de junho de
2011, quando aconteceu a reunião inaugural, em uma sala da Universidade de São
Paulo. Na notícia, constava que os jovens haviam prometido “disseminar
amplamente” a experiência do governo norte-coreano.
Antes
de contar com o aval dos norte-coreanos, Roseno mantinha um blog sobre o
país com seu amigo Gabriel Martinez, estudante de filosofia, hoje com 23 anos.
Militantes do PCdoB naquela época, eles abordaram funcionários da embaixada
norte-coreana em um evento. A partir deste dia, criaram laços com o
governo e o grupo de estudos tomou forma. Foi então que chamaram André Ortega,
autor de outro site de apoio ao país.
Desde
então, os três viajaram duas vezes para a Coreia do Norte, convidados pela
Academia Norte Coreana de Ciências Sociais para participar de encontros
mundiais sobre a ideia Juche. Lá, foram levados a fábricas e fazendas,
privilégios não concedidos aos poucos turistas que frequentam o país.
Eles
dizem ter gostado do que viram. “O problema de muitas pessoas que vão para lá e
voltam com essa posição (ruim sobre o país), é que eles vão justamente para
isso, com o intuito de ver a pobreza,” diz Martinez. “E os guias percebem isso.
Sabem que o turista vai como se estivesse num zoológico. Eles sabem o que as
pessoas estão fazendo e dão uma cortada.”
A
pobreza na Coreia do Norte teve seu ápice na década de 1990, quando algo entre
240 mil e um milhão de coreanos morreram devido à fome. Na visão do grupo, isso
não ocorreu por um erro dos líderes do país, mas por causa das sanções sofridas
pelos norte-coreanos. “A principal razão foi com certeza a questão do ambiente
hostil que se criou com a queda da União Soviética e do leste europeu. Mas o
imperialismo tenta colocar que foi uma política equivocada do governo.”
Mesmo
durante esse período, a Coreia do Norte manteve o exército como sua prioridade,
a chamada política Songun. Os integrantes do grupo defendem a ideia, incluindo
as pesquisas nucleares que tem estremecido a relação entre a Coreia
do Norte com outros países. “Quem não tem bomba atômica, principalmente um país
como a Coreia, não tem independência,” diz Martinez. “Se não, iria acontecer o
que aconteceu no Iraque, Líbia e vai acontecer na Síria. Esses países tiveram o
mesmo destino.”
Trabalho
forçado
O
país é criticado duramente por organismos internacionais e organizações não
governamentais ligadas aos direitos humanos. De acordo com um relatório da
Anistia Internacional, divulgado em 2011, há cerca de 200 mil presos em campos
de concentração. Relatos de maus-tratos, incluindo tortura e execuções
arbitrárias, constam de documentos das organizações e livros com depoimentos de
refugiados.
Os
integrantes do grupo admitem que a política de “reeducação por trabalho” existe
no país. “Existe um sistema prisional que faz uso do trabalho forçado, no mesmo
estilo da China e do que existiu na União Soviética”, diz Martinez. “Mas não dá
para falar que a política prisional da Coreia do Norte se baseia em campos de
concentração, desrespeito aos direitos humanos e maus-tratos.”
Para
os estudiosos de juche, isso não deve guiar a discussão sobre o país. “Não
duvido que algumas histórias de dissidentes sejam traumas pessoais verdadeiros.
Mas eu também não duvidaria que fossem forjadas. E, em termos de discussão
política, isso é irrelevante por causa da base fraca dessas histórias,” diz
Ortega. “Algumas histórias são mais pitorescas que o culto à personalidade.
Imagine como um cara vai sair do campo de concentração do regime mais violento
e militarizado do mundo, onde dizem que as pessoas tem de usar passaporte
interno para sair da cidade e que nem as pessoas comuns têm como se locomover?
Então, como ele conseguiu sair do país a pé? Atravessar o país e chegar à
China?”
Verdadeiros
ou não, os relatos não chegam aos ouvidos norte-coreanos, que só tem acesso à
imprensa controlada pelo Estado. “De fato, não dá para abrir um jornal para
defender o capitalismo. Nesse sentido, sim, tem uma censura,” diz
Martinez. Os estudantes, porém, contestam as comparações feitas com a
mídia do resto do mundo, refutando a ideia de que os norte-coreanos estão numa
situação pior. “Até hoje existe uma lei de segurança nacional (na Coreia do Sul)
que prende comunistas. E os livros do Kim Il-sung são proibidos lá. Isso é
liberdade?”
Coreia
levada à sério
Três
dias depois do aniversário de Kim Jong-il, líder da Coreia do Norte morto em
2011, o grupo se reuniu para celebrar a data em uma sala no centro de São
Paulo. Durante 40 minutos, leram a transcrição de uma fala do líder na década
de 70, traduzindo em voz alta versões em inglês e em espanhol do texto. Depois,
fizeram uma discussão de teor acadêmico: qual a influência do indivíduo na construção
do socialismo segundo a ideia juche?
Na
reunião, não havia nenhum dos símbolos do país que são motivos de risos
ocidentais. Não há retratos dos norte-coreanos e ninguém fala termos
como “líder supremo”. Para eles, o humor sobre o país não é banal e tem
motivos mais profundos. “A imprensa ligada ao imperialismo se aproveita das
peculiaridades para promover a desinformação, tendo isso como base,” diz
Martinez.
Os
integrantes do grupo lamentam que a Coreia não receba da esquerda brasileira a
mesma simpatia que o regime de Cuba. Eles veem o distanciamento cultural como
um dos fatores para que isso não aconteça. Para eles, Kim Il-sung é tão
importante para o socialismo quanto Fidel Castro. Os estudantes ainda dizem que
os dois países sofrem do mesmo mal: o embargo econômico dos Estados Unidos.
“Muitas vezes o camarada apoia Cuba, fala que o imperialismo é hostil contra
Cuba, que a imprensa fala mentira sobre Cuba. Mas quando é a Coreia do Norte,
não,” lamenta Ortega.
Apesar
da falta de apoio, eles dizem não travar grandes embates dentro da esquerda por
defenderem Kim Jong-un. A discussão só se acirra, segundo eles, quando entram
em pauta os assuntos brasileiros. “São trabalhos separados, mas a gente defende
a questão da revolução anti-imperialista e anti-feudal”, explica Roseno.
Estudantes
de uma filosofia de um país a 18 mil quilômetros de distância, eles dizem ter
aprendido lições importantes para usar no Brasil. “A ideia Juche permite
que a gente acabe com esses erros que infelizmente ainda existem, do
“seguidismo”, de a gente não querer se apoiar nas próprias forças. A gente
tem que fundar nosso próprio exército de operários camponeses,” completa.
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Piero Locatelli. Fonte: CartaCapital